Comentário a "Sandeman ou a parábola dos figos secos" - de benjamin

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6/11/2007 15:11
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Este já esteve, e permanecerá, na secção de comentários do poema.
Por sugestão do criador deste bloco do fórum que, por coincidência é o autor do primeiro poema que aqui insiro.

O poema, na sua integra, virá depois de comentário

Afirmo, sem medo, que este poema sabe a tabu, do primeiro ao último verso.

Sandeman é uma marca conhecida de vinho do porto.
A sua imagem, ou logótipo, que vem bem claro no rótulo dessa marca (passo a publicidade), é um misterioso homem de capa, todo ele anónimo e envolto numa sombra escura e robusta. Há quem diga que tem o nome de Don.
Sem grande dom, é denominação de nobreza, como o Sir em inglês.
Além de circular pelo mundo engarrafado, é um catrapázio gigante, em Vila Nova de Gaia. Tenho a memória de um tio meu chamar àquele monumento, Roque Santeiro, numa conversa jocosa que ele consegue ter, quando alegre. Também a personagem da novela era misteriosa.
Sobre capas e tios, mais à frente.

Os figos são flores invertidas.
Pessoalmente, acho-os deliciosos. Ir aos figos é uma boa maneira de ir parar ao hospital. Os ramos mais altos têm os maiores.
A folha da figueira foi a primeira peça de roupa, segundo o antigo testamento. Uma das primeiras consequências do pecado original.
Figos secos lembra-me o natal e a minha incapacidade de lidar com doces.
A desidratação destes frutos não tem muito que se lhe diga: é deixar ao sol.
Assim, conservam-se quase para sempre, e é proibido misturá-los com frutos secos, como a amêndoa, ou a noz. Ou, em alternativa, deito a balança no lixo.

Já que falamos do antigo testamento, ele é pródigo em parábolas. Textos de forte moral em que o uso de metáforas é abusivo. Interessante o uso da palavra no título. Terá este poema uma moral?
A metáfora, é uma das figuras de estilo em que tenho mais dificuldades, de interpretar e de criar. Há umas bastante óbvias, outras nem tanto. Criar novas metáforas, ou originais, é bem difícil e desafiante.
E pronto, já consegui sair do título...


O sujeito poético começa por fazer uma confidência, na primeira estrofe. E fá-lo sob a forma de adivinha.
Na primeira pessoa, diz que “escondo...” evitando mostrá-lo, e depois compara-se com as “...nuvens...”, elemento de água essencial à vida, mas inacessível, a não ser que se desfaça em chuva, por arrefecimento. Embora os dois últimos versos da mesma estrofe vinquem o “...depressa...” e a efemeridade. Um passageiro, no fundo.

A justificação para isso surge no verso seguinte, em que o secretismo se mantém, mas o elemento ar se repete, desta vez, não nas nuvens, mas nas “...aves...”.
E aqui as aves têm duas ações que, poeticamente, são magníficas, o voo (como as tais nuvens) mas, sobretudo, o canto.
Ser “...das aves...” “...desde criança...” é uma expressão orgulhosa de pertença, quase como se tratasse de um clã. Uma sina.

Mas, assim como parece se colocar num grupo especial e restrito nestas duas estrofes, logo na terceira desmonta totalmente essa ideia, com a repetição de “... igual às outras...” no segundo e quarto versos.
Especial, mas não tanto, e acaba a apresentação.

Na primeira pessoa continua o poema e surge um macabro ”...agarro as cortinas surradas\enquanto me mordes com as mãos...”.
Dois versos fazem a quarta estrofe, e a parábola começa.
A mordedura é uma agressão animal, da maioria dos predadores. Os caninos salientes, geralmente, procuram zonas vitais onde atacar. As mãos (e as garras), na melhor das hipóteses, arranham.
Ou agarram “...cortinas surradas...”. Uma bela metáfora, também, ao escondido por trás de algo, e com esse sujo a ter, imageticamente, o tom de entranhado.
Tabus.

A personagem principal deste poema é a tia Linda. Não sei se nome, se adjectivo.
Optei pelos dois. Pois é a representação do cúmplice, do veículo, do chulo e do manipulador. Da que compra o afecto e a submissão com algo tão menor, como figos secos.
Ela surge na quinta estrofe, e é nessa mesma que fica a última expressão de ingenuidade do sujeito poético.

Tudo o resto é resignação.
Como tia é um grau de parentesco, a estrofe que vem quer fazer divisões. O trigo do joio. As valorizadas “...aves...” têm rostos (superficialidade) e "...muros..." (barreiras). E tias.
O autor, aqui, faz a piedade de salvar, desta aparente alusão ao abuso sexual de menores, a figura da Mãe. Coloca um elemento ligeiramente mais distante nessa posição.

O elemento água, que é iniciado nas altas “...nuvens...” aparece, agora, como “...
o ribeiro sujo de uma sarjeta...” totalmente poluído (pela mão do Homem).
Quase tem cheiro este verso.
À oitava estrofe o título volta em força, o elemento dos figos aparece associado à tia e o dar a mão a corporalidade (sensualidade não me estava a soar bem).
“Dar a mão” tem muitos sentidos. Tem o direto, de fazer companhia. O associamos ao laço amoroso (mãos dadas). “Dar a mão em casamento”, como transmissão do dote e permissão desse ritual. Ou, simplesmente, o mais metafórico, o ajudar.
Podendo-me escapar algum, neste poema não consigo encaixar nenhum destes.
O “dar a mão” perfidamente fingido e manipulador, talvez.
Engraçada a escolha do "...lanche..." para a estrofe.
Pensando um pouco nisso, é uma das refeições que foge das três principais. Como se fosse um luxo, em tempo de escassez, como o ambiente anteriormente descrito parece querer indicar.

O sujeito poético, a partir da décima estrofe, assume a voz no feminino.
Também o terceiro protagonista surge, na figura do “...tio...”.
A capa do Don parece assentar bem (mal) no tio.
O binómio tia-tio forma uma equipa mórbida e explica a “...revolta...” do sujeito poético.
Um dos pontos mais marcantes deste escrito, aparece nestes três versos: “...nasci para ser degolada\todos sabem que a carne de sangue fresco\é a mais saborosa...”.
Há a resignação supracitada, mas além dela, uma estranha forma da vítima justificar os atos do agressor. Como as mulheres usarem roupas provocantes ser justificação para violações!...
Tantos tabus.

Com mestria, o autor continua a conseguir provocar o asco do (deste) leitor, nas estrofes seguintes.

A corrupção da inocência vai-nos guiando no “...ventre peludo...”, no “... mas agora sou uma criança podre...”, no “... na primeira vez foi atrás da igreja...” numa leitura que custa até à dor e até ao fim...

Um retrato demasiado real, escrito com as entrelinhas devidas que a poesia permite, que todos devemos conhecer.
Ou pelo menos não ignorar.
Assim se quebram Tabus.


Sandeman ou a parábola dos figos secos


escondo no meu corpo
aquilo que se diz das nuvens
que depressa nascem
e depressa envelhecem

o segredo
é que desde criança sempre fui
das aves

como esta nesta janela
igual às outras
com gente como eu
igual às outras
nestas pensões em que
tudo dá para o drapeado noturno
das mesmas ruas

agarro as cortinas surradas
enquanto me mordes com as mãos

a minha tia linda
é que sabia tão bem como me dar
a mão

daqui diviso aves por
rostos
rostos por muros
casarios pardos
o ribeiro sujo de uma sarjeta
ao longe um sino

abri senhor os meus lábios

a minha tia linda dava-me a mão e
lanchávamos figos secos

existes para me cobrir
és parte da minha revolta
porque um dia pensei que a febre
também podia ser uma espécie
de certeza

nasci para ser degolada
todos sabem que a carne de sangue fresco
é a mais saborosa

o meu tio mastiga em seco
e atira a malha
a minha tia só me aperta
a mão

faz diferença ter uma casa de banho
onde me trancar
no espelho
faltam-me os braços
mas tenho um ventre peludo
por dentro
sou veludo e sou garrote
e há dias em que gostava
de ser apenas um ângulo

mas agora sou uma criança podre

que a tia linda leva pela mão
até ao rio do homem da capa e
lanchamos figos secos

o quarto cheira a fumeiro
frio e fome
a primeira vez foi atrás da igreja
os cães não param de ladrar
e ele bate com a porta

a malha cai bruta sobre o pino
a minha mão dói tia linda
e o homem da capa está a olhar para nós

encosto o rosto à janela
tento voar e cruzo o rio

as suas mãos
nas minhas

figos secos


Leia mais: https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=360102 © Luso-Poemas


Criado em: 5/2/2022 13:33
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Re: Comentário a "Sandeman ou a parábola dos figos secos" - de benjamin
Administrador
Membro desde:
2/10/2021 14:11
Mensagens: 410
.
Sem risco, há poesia? Sem vertigem, sem assombro perante as nossas altitudes e pofundezas?

A propósito, hoje soube que Chico Buarque deixou de cantar “Com açúcar, com afeto” (link).



Ao que parece, agora só se pode fazer canções sobre o que deveria ser -- não sobre o que é e o que foi.

O que vale é que não tenho muitos leitores, caso contrário, qualquer dia, alguém se lembraria de me dizer que este poema deveria ser apagado e que eu deveria substituí-lo por outro, com uma personagem mais pró-ativa...

Criado em: 8/2/2022 9:03
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Re: Comentário a "Sandeman ou a parábola dos figos secos" - de benjamin
Administrador
Membro desde:
22/11/2018 17:04
De RIO - Brasil
Mensagens: 1850
"Ao que parece, agora só se pode fazer canções sobre o que deveria ser -- não sobre o que é e o que foi."

Não fui a todos os shows dele, mas desde que me conheço por gente nunca soube que cantara solo "Com açúcar e com afeto", se não num vídeo em duo com a Nara Leão; música que ela encomendara.
Com todo respeito de ex-fã, o sonso declarar que não vai mais cantar a música atendendo uma imposição das feministas, como assim, hipócrita, oportunista, se nunca a pôs no repertório... É como ele não declarar que muitas músicas que ele cantou, não compôs, foram compradas.

Hoje, por conta do politicamente correto somos tolidos, e até perseguidos, da liberdade de criar, ou na pior da hipóteses, de rever o que fora criado.

"Politicamente correto é disfarce de censura e tirania"

Criado em: 8/2/2022 16:24
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Re: Comentário a "Sandeman ou a parábola dos figos secos" - de benjamin

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1913
Interessante por onde o tema foi-se desenvolvendo.
A censura, na minha opinião é altamente (totalmente) censurável.
O Zé escreveu algo muito correto. A sociedade de hoje está muito estranha. Há uma cultura excessiva do mainstream.
O politicamente correto, apenas faz sentido se, quem o praticar, o pensar verdadeiramente. Isto é, não está mais preocupado com aquilo que o vizinho do lado possa pensar.

Sempre houve mecanismos de auto-censura. Dentro do ser humano, segundo algumas corrente de psicologia, podemos fazer a divisão do Homem em consciente, subconsciente e inconsciente, tudo no mesmo individuo, e a representação da importância de cada um destes mecanismo da personalidade e da mente é feita no formato de pirâmide, nessa ordem.
É o subconsciente que serve de filtro para o inconsciente, que depois é representado no consciente, salvo erro.

É óbvio que não dizemos tudo aquilo em que pensamos.
Mas, o facto de se estarem a registar comportamentos em massa, que parecem agir como fosse um sistema de censura, como foi feito em regimes de censura ditatoriais, é alarmante.


P.S. Nota, se alguém deste site fizesse o que o benjamin refere no final, ainda iamos ter uma conversinha....



Criado em: 9/2/2022 8:09
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Re: Comentário a "Sandeman ou a parábola dos figos secos" - de benjamin

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1913
Segunda leitura



Depois de refletir sobre a censura e sobre algumas respostas ao primeiro comentário, resolvi fazer uma segunda leitura.
Sobre a censura muito haveria a ser dito. O lápis azul passou a ser um símbolo odioso da prisão de expressão.

Há dias fui desafiado a ler um livro de Saramago chamado “a noite” (sim, o título é em minúsculas). É uma peça de teatro com poucos golpes de génio.
Quem conhece o Nobel sabe que a ficção é a sua praia (sim para mim ele não morreu).
O drama todo passado na redação de um jornal sem nome, fala abertamente de censura. Mas, não tanto do lápis azul (embora esteja lá), mas mais dum jornal do sistema, do jornalismo falso e resignado, imoral.

E de repente tive uma ligação direta com “os figos secos”.
Sinto que debrucei-me pouco na segunda metade do poema, uma vez ter achado a primeira tão forte.

Apesar da voz do sujeito poético estar quase sempre no tempo presente, gramaticalmente, ela tem cheiro (não perfume) a pretérito imperfeito.

O autor aborda o tema opressão\abuso e sujeição\submissão duma forma tão forte e particular que ao leitor pode escapar uma temática ainda maior.
Se formos corrompidos desde cedo, e desde sempre não conheceremos mais nenhuma realidade. Se for usada a força bruta e desproporcional, cada vez que houver o mínimo sinal de “...revolta...”, pode ser quase utopia ela nascer.

Se, quem tem memória, se lembrar dos tempos de ditadura (geralmente militar ou militarizada), sabe que a miséria dos figos secos, do frio, do cheiro a fumeiro, dos pés descalços, do fato de domingo, da fome e da sardinha dividida, da escolaridade só para alguns poucos (escola só 4 anos, aos 10 vais trabalhar para o campo ou para as obras), da riqueza severamente mal distribuída, da policia internacional da defesa do estado (é melhor não dizer as siglas, é proibido), do medo a chegar ao terror, foi uma verdade em Portugal em décadas de prosperidade industrial pelo resto da Europa, e ainda é uma realidade na atual Coreia do Norte.
Misturei tudo.
Cuidado que o Tarrafal, afinal, ainda é uma ilha inteira.

“a noite” de Saramago tem um final feliz, mas se na peça recuassem dez anos haveriam figos para o lanche, atrás de uma misera igreja qualquer...

Criado em: 10/2/2022 21:25
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