Comentário a "Quando quebra a asa, as sombras são casa", de Abissal
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2/10/2021 14:11
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"Quando quebra a asa, as sombras são casa", de Abissal

quando a noite chega
e as sombras dançam
pelos cantos da casa,
eu acendo a lareira
dos teus olhos nos meus
ainda em brasa.
quando as sombras dançam
no meu corpo sem asa,
Eu acendo a clareira
do branco da fuga
pelo rasto da viagem.

quando as sombras negras
carregam na esperança
eu desenho o teu corpo
voando ao serão
colado ao meu
em borboletas de amor
num sol canicular
derretendo as mágoas.

no meu rosto em traçado
desenhado à mão

pelo teu toque cicioso
tatuado a carvão.




Percurso de leitura nº 9 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Por detrás dos comentários que faço, muitas vezes, existem pequenas histórias, acasos ou coincidências ― que não terão grande interesse, mas que, mesmo assim, gosto de partilhar com quem perde tempo a ler o que escrevo.
A escolha deste poema para comentar tem a ver com a coincidência de, há pouco tempo, ter relido a Mensagem, de Pessoa, e ter encontrado um poema com elementos semelhantes ao texto de Abissal. Chama-se "O Quinto Império" e começa assim:

"Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!"


Aqui também encontramos a casa como símbolo de proteção, a asa associada ao elevar da matéria à imaginação, o fogo como elemento primordial de vida, de paixão, de purificação. No poema de Abissal, estes símbolos parecem associados a uma relação dual, em que um "eu" e um "tu" se constroem mutuamente.

Destacaria, em primeiro lugar, os contrastes entre escuridão e claridade presentes sobretudo na primeira estrofe. Perante a noite, o sujeito acende a lareira dos seus olhos nos olhos do outro. Na Antiguidade, a manutenção do fogo era vista como um ritual correspondente à manutenção da vida. Socorro-me aqui de Fustel de Coulanges, um historiador do séc. XIX, que explica muito bem este culto: "Todas as casas dos gregos ou dos romanos possuíam um altar; neste altar devia haver sempre restos de cinzas e brasas. Era obrigação sagrada do dono de cada casa conservar aceso o fogo, dia e noite. O fogo só deixava de brilhar sobre o altar quando toda família havia morrido; lar extinto, família extinta, eram expressões sinónimas entre os antigos."

Reconheço no poema de Abissal essa liturgia de regeneração recíproca entre os dois seres, que ocorre através da sensualidade dos corpos que se unem, que descobrem, um no outro, um espaço de claridade para percorrerem em conjunto, apesar da noite. Num jogo de palavras engenhoso, a lareira transforma-se em clareira, e há um "rasto da viagem" que testemunha outra transformação: das sombras em formas que dançam, que permitem ao "corpo sem asa" do "eu" um outro tipo de voo ― pois não será a dança a forma mais perfeita de abraçarmos o espaço e esquecermos os limites do solo e da gravidade?

Na segunda estrofe, a dança dá lugar às artes plásticas. Na sombra, quando a escuridão rodeia a esperança, o "eu" desenha o corpo do amado e o "tu" esboça o seu rosto ― como se, apenas pela retribuição de contornos, um e outro descobrissem a sua identidade. Não é talvez por acaso que essa descoberta os une e os transforma em "borboletas" ― o símbolo da deusa grega Psique, personificação da alma, eterno amor do deus Eros. Estas borboletas desafiam o destino: se na estrofe anterior, surgia uma clareira e a possibilidade da viagem, agora o "serão" transforma-se em "sol canicular", por onde ambos voam -- para queimarem as suas asas, talvez...

A construção do poema recorre a uma espécie de paralelismo semântico (com repetições ou semelhanças de versos, como acontece com "quando a noite chega" / "quando as sombras negras", "eu acendo a lareira" / "eu acendo a clareira", "as sombras dançam"), permitindo uma coesão que confere ritmo ao texto e uma grande intensidade às suas ideias.

Criado em: 14/4/2022 10:49
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Re: Comentário a "Quando quebra a asa, as sombras são casa", de Abissal
Membro de honra
Membro desde:
27/10/2021 11:59
Mensagens: 558
Olá, Benjamin.
Leio o que escreve, sim. Não acho que seja uma perda de tempo.
Só posso agradecer a leitura e as palavras com que presenteou este meu poema, é um privilegio!
Tudo de muito bom na sua vida, uma santa Páscoa.
Abraço



Criado em: 14/4/2022 17:32
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