Comentário a “Ecdise” de MarysSantos

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O poema, na sua íntegra, estará legível após o comentário.

Acho a escolha do título muito feliz.
Tem algo de exótico, e a sua invulgaridade fez-me consultar o dicionário, por exemplo. Além de ser um termo científico.
Ele significa “Processo de muda da pele ou exoesqueleto” fonte Priberam.
Sobretudo, é auto-explicativo, deixando, apesar disso, o leitor com aquela pontinha de curiosidade da boa.

O segredo que me levou ao comentário deste poema, está na primeira estrofe. Merece destaque:

“para abraços
dois casacos
bastam...”

Ora, apanhado de surpresa, qualquer leitor procura uma verdade nisto.
Imageticamente pensei em dois casacos enfiados um no outro. Com as mangas presas por alfinetes ou linhas imaginárias. Assim ausentes de corpos. Literalmente.
E tive uma sensação de estranheza. Focado apenas nos casacos.

Pensei no conceito de abraço.
Primeiramente, ainda tentei imaginar um auto-abraço. Coisa fria e feia. Quase masturbatória.
Depois ao chegar intuitivamente ao que se exige no mesmo tive o óbvio conceito de corpo, esta matéria física que nos limita e define.
E, para ser satisfatório, também cheguei à conclusão que o mínimo exigível é de dois corpos.

O abraço é um comportamento social que tem vários graus de intimidade.
Desde o abraço escrito no fim de um e-mail, que determina um certo laço de estima. Aos abraços que damos aos pais. Até ao encetado num coito, que busca o orgasmo do próprio e do outro.

Sobre um acto físico, apenas pode ser igualado com beijo, em complexidade.

Um abraço com mais do que dois casacos é possível.
Podemos ser acusados de promiscuidade, mas já o vimos na comemoração dum golo num jogo de futebol, por exemplo.
E pode-se até abraçar a promiscuidade.
Desde que não forçada.

Acho o verbo bastar também muito bem conseguido, dando uma força sonora bem interessante, com uma sílaba tónica assaz acentuada.

Engraçadinha a primeira estrofe, não?

Os casacos ficam mais bem apertados na segunda.
Desfaz-se o efeito visual e entra-se na metáfora.

O abraço, como os casacos, aquece e protege.
E nisto o número da primeira estrofe fica mais bem explicado e definido.

A metáfora, como figura de estilo, tem destas belezas. Faz-se comparações não comparando. O número de metáforas chega a ser quase infinito, não faltando novas hipóteses. Haja engenho.
Um casaco aquece (ou será abraço, ou os dois?), o outro protege (será anti-balas ou impermeável?).
Aqui volto a meditar um pouco, não será o “...aquecer...” o “...proteger...” do frio?
E não será o “...proteger...” um tipo de aquecimento?

Apesar destes raciocínios, mantém-se as estrofes num registo curto, seja na métrica seja no número de versos.
É uma estranha ambição desta autora. Ou vocação.
Dizer muito com pouco parece coisa de milagres.

A última estrofe faz mais versos apesar de não ter uma métrica extensa e continuar a haver uma poupança nas palavras mas há pelo menos um verso que destaco, sobretudo pela audácia:

“... a nua andança sempre conquista...”

há nisto um certo atrevimento. E uma verdade pura.

A conquista tem sempre um lado de violência, nem que seja no arrebatamento, na sedução. E aqui mais do que escudo, essa nudez aparenta ser uma arma.

Como se, a mudança de pele para “não-pele”, ou descasacada, pudesse nos ensinar que existem várias formas de estar e que nos revelamos em todas elas.


Ecdise


para abraços
dois casacos
bastam

um para aquecer
e outro para proteger

no demais
a nua andança sempre conquista
resistente
outras peles
para provimento

Criado em: 18/4/2023 20:08
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Re: Comentário a “Ecdise” de MarysSantos

Membro desde:
29/1/2015 10:19
De Betim - Minas Gerais - Brasil
Mensagens: 4856
Comentário ao poema ECDISE e ao comentário

Concedo: O título é extremamente poético e acertado. Trazer do fenômeno metamórfico da larva do bicho-da-seda a ideia de trocar de casca sem se perder a essência é, sem dúvidas, uma imagem muito rica em si. Traz toda a poesia a simples palavra.

À luz do fenômeno evocado pelo título, contudo, o verso dos casacos se bastando para um abraço sem corpos — algo surreal, à primeira vista — sugere-me antes a transitoriedade da casca do que qualquer ideia de autossatisfação solitária. Penso n'um paralelismo, a saber: o exoesqueleto do bicho-da-seda está para o ser humano assim como casaco que o cobre. Mesmo sem os corpos, guardados em contacto, casacos lembram o carinho que já houve.

Abraços entre roupas não são inéditos. Penso em Chico Buarque "Se na desordem do armário embutido / Meu paletó abraça teu vestido ..." Sugerem um quê de abandono, mas também de intimidade, como se as roupas, às ocultas, também tivessem seus jogos afetivos de segunda pele. Fantasias do olhar humano a se projetar sobre as coisas... Enfim, poesia.

Não obstante, a sequência parece cortar o devaneio intimista do leitor com uma explicação objetiva, afinal, cada casaco tem uma função: um aquece e outro protege. Talvez a escritora os vista ao mesmo tempo, não sei... Um pode ser felpudo; o outro, impermeável... Pode ser. O facto é que têm uma razão de ser prosaica esse abraço, não a recordação amorosa da letra da música de Chico, por exemplo. Os casacos estão juntos porque costumam ser usados juntos. Ambos conformam o exoesqueleto a ser deixado de lado quando o eu-poético se despe.

Nudez que, aliás, se concretiza na última quadra. Sim, abandonados os casacos, a pessoa conquista outras peles (novas roupas? faz mais resistente a própria pele nua?) para se revestir protegida.

A metamorfose se completa: O exoesqueleto é deixado de lado e o tecido subcutâneo exposto cria casca.

Embora um poema curto, deixa uma ideia feliz de que estamos sempre em transformação.

No demais (como recria, à guisa de conclusão, a autora) agradeço ao caríssimo Rogério Beça a leitura atenta que me atraiu para esse primor de escrita da nossa MarysSantos. Dentro do oceano de palavras do Lusos, é bom seguir os percursos de nautas sensíveis a descobrir tesouros na vastidão.

É isso.

Grande abraço a Rogério Beça e palmas a MarysSantos.

RicardoC.







Criado em: 19/4/2023 12:03
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Re: Comentário a “Ecdise” de MarysSantos
Administrador
Membro desde:
2/10/2021 14:11
Mensagens: 410
.
Apreciei muito os dois comentários. Espero ver o Ricardo por aqui mais vezes ;)
Parabéns à MarySSantos, por este poema em particular e por ser uma constante fonte de inspiração.

Criado em: 19/4/2023 13:15
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Re: Comentário a “Ecdise” de MarysSantos

Membro desde:
6/6/2012 14:51
De Macapá/Amapá - Brasil
Mensagens: 5734

Luso-Poemas está de parabéns pela excelência de seus escritores/poetas/interpretes, interpretes estes que possuem a capacidade não somente de enxergar os poemas em sua nudez como também a vesti-los. É a pele!
Grata!

Criado em: 21/4/2023 14:37
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