Coisas que nasceram aqui

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De Queluz
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A estranha história de Júlio Chuva

Júlio Chuva devia o apelido ao pai, madeireiro da zona do Vez. Homem corpulento, capaz de com duas machadadas deitar abaixo um pinheiro.
O progenitor era assim chamado pelos da aldeia, que brincavam com o facto de a sua altura roçar as nuvens, trazendo por isso chuva.
Manuel, do alto da sua bonomia, sempre achou piada a essa hipérbole, principalmente em dias de sol…
Sua mulher Zeza, era herdeira de um legado de curandeira que atravessou várias gerações da família, e muito respeitada por todos. Os que a veneravam por curas milagrosas à custa de ervas e rezas, e aqueles que conheciam os seus dons e forte espiritualidade.
Júlio Chuva desde menino que se habituara a que a casa fosse um corrupio de gente, uns amparados nos outros, com pernas e braços estropiados, mais aqueles de olhar esgazeado, rodeados de velhas de xaile preto na cabeça, soturnas e estranhas.
Muitas vezes o rapaz assistiu à expulsão dos demónios dos corpos. E foram tantas as vezes, que isso era já coisa normal na sua vida. Razão do dia se sobrepor à noite e causa.
Frequentou a escola, mas cedo a abandonou, não encontrando prazer em cumprir regras ou aprender coisas que não fossem aquelas que se ligavam ao seu mundo, místico, povoado de histórias e personagens.
As autoridades competentes ainda tentaram que regressasse para cumprir a escolaridade obrigatória, mas assim que os avistava subindo o monte, logo se
punha a léguas, regressando só quando fosse seguro.
Era filho da floresta, de tantas vezes se embrenhar nela para levar o almoço ao pai, ou para o ajudar na lide, logo que os braços se tornaram mais fortes e rijos.
Mas também era filho de Zeza Miranda, e isso viria a revelar-se nele a cada dia da sua vida.
Tudo começou num dia em que sem razão aparente, Júlio, já homem feito, começou a cantar uma canção desconhecida, numa língua completamente estranha, feita quase só de sons nasalados.
Esteve da alvorada ao pôr-do-sol a trautear aquela melodia doce, quase canção de embalar.
No dia seguinte, logo pela manhã, tocaram os sinos por João Carroça, encontrado morto no seu leito.
A princípio, ninguém se deu conta. Ninguém reparou que sempre que Júlio cantava aquela estranha canção, alguém morria no povoado no dia seguinte.
Ninguém, não é bem assim.
Logo da primeira vez, sua mãe chamou-o até junto do fogo onde preparava umas infusões, e disse-lhe:
- Júlio. Hoje cumpriu-se um destino anunciado desde sempre na minha família.
Escreveu-se há muito tempo que um homem carregaria nos ombros o pesado fardo de ser o arauto da morte. Sempre que cantares a melodia de hoje, alguém morrerá próximo de ti. Estejas tu onde estiveres.
Assim foi. De todas as vezes em que alguém morreu, nos tempos que depois vieram, Júlio sempre entoou a canção da morte, avisando de véspera que alguém se preparava para partir.
O mais fantástico, é que era tão suave aquele cantar, e tão prolongado aquele transe, que as pessoas começaram a procurar Júlio para o ouvir sempre que o
fenómeno acontecia, como que encantadas, envolvidas nas sonoridades que
extraía da alma e que ecoavam pelo vale como nevoeiro musical.
Nem a perspectiva de poderem ser o próximo a descer à terra os demovia.
Autênticas peregrinações de gente, faziam o caminho íngreme que conduzia até aquela simpática casa amarela no cimo do monte, para ouvir o cântico do além.
Um dia, Júlio acordou com uma estranha sensação e começou a cantar, porém o cântico era mais sofrido e custavam-lhe os sons, que eram intercalados dentro de si por uma profunda tristeza.
A mesma que sentiu no dia seguinte quando seu pai morreu esmagado por um tronco que se soltou do camião de transporte.
Sentia-se o mais infeliz dos homens, pois não tinha podido fazer nada por ele, nem interpretara como próxima se si aquela sensação de desconforto que experimentara.
Nunca mais foi o mesmo. Fechou-se num silêncio de rezas, sempre junto de sua mãe, que com o decorrer dos anos foi perdendo visão, até ficar completamente cega e dependente de si.
Viviam os dois numa comunhão plena, deixando também progressivamente de receber pessoas, a cada dia mais donos do seu espaço, que os da aldeia desconfiavam ser o mundo.
Este e o outro.
De tempos a tempos, Júlio aparecia no povoado, vestido com uma capa negra e um chapéu de aba larga de onde escorriam fartos caracóis do seu cabelo escuro, para fazer algumas compras.
Criou-se á sua volta uma aura de terror, contrária aquela que em tempos chamou as pessoas até si. Agora todos o olhavam com medo, como se o simples cruzar de um olhar fosse capaz de provocar a morte.
Júlio sentia isso, mas não fazia a mínima questão de se importar. Parecia estar desligado do mundo, falando o suficiente para ser compreendido, não dando azo a conversas, até porque delas fugiam temerosos os habitantes da aldeia.
Numa tarde estival em que desceu para se abastecer de alguns bens, recomeçou a cantar, desta vez com uma sonoridade que chegava a todo o lado. Todos se assustaram e começaram a fechar as portas dos estabelecimentos e das casas, na tentativa de escaparem ao canto premonitório.
Só um homem veio ter com ele. Seu conhecido. Trazia o rosto lavado em lágrimas, sulcado pelo sofrimento. Disse-lhe:
- Júlio, a minha filha Vera está muito mal, os médicos já me desenganaram e desconfio que o teu canto é por ela… Haverá alguma coisa que possas fazer?
Júlio Chuva levantou com a mão esquerda o chapéu de aba longa, olhou-o com seus olhos de mel, denunciando o seu rosto magro como há muitos anos ninguém via.
- Leva-me até ela. – Disse, soltando novamente a melodia.
A jovem encontrava-se no seu leito de morte, ardendo em febre. Á sua volta uma azáfama de panos frios e mulheres de faces rubras.
Júlio retirou a capa e o chapéu, mostrando o corpo musculado que herdou do pai.
As mulheres só não coraram mais devido à delicadeza da situação.
Observou o contraste na face pálida da bela rapariga. Tocou a sua pele para lhe levantar as pálpebras. Juntou o ouvido ao seu peito quente, sentindo um coração em ligeiro bater. Algo como nunca havia experimentado nos seus trinta anos de vida. Era como se aquele coração quisesse cantar com ele a melodia. No tom mais suave de sempre, numa quase escala de sonho.
Pediu que a transportassem até à sua morada. Sua mãe haveria de encontrar unguento ou poção que a trouxessem à vida, mais agora que se sentiu tão próximo daquela mulher, respirando por segundos com ela, na ânsia de um cântico a dois. Zeza não perguntou quem lá vinha porque sabia ler os passos, sabia identificar os cheiros. Não perguntou sequer o que se passava, logo ordenando que colocassem Vera na cama.
Iniciou-se um estranho ritual de palavras ditas, envoltas em cheiros de ervas. Um frenesim de gestos baptismais, feitos com piaçabas de plantas, num cerimonial que trouxe consigo a noite sem que ninguém notasse.
A velha curandeira, a determinado momento pediu que todos saíssem. Que a deixassem a sós com a moça. Fazendo igual pedido a Júlio que insistia em ficar.
Disse-lhe fitando-o nos olhos, mesmo que a sua cegueira os tornasse baços:
- Nasceste com um destino terrível pesando sobre ti, mas não sabes o que os
Deuses te prepararam para se redimirem. Escuta o vento, a sua melodia. Nela te embrenharás perscrutando o infinito e a beleza da vida. Ouve com o coração e serás feliz…
E fechou atrás de si a porta do quarto.
A madrugada aconchegou-se orvalhando sobre os caminhos. Cada um dos que esperavam foi cedendo ao sono, recostando-se pelos cantos da casa.
Um puxador abre devagar a porta do quarto, atrás de si uma estranha melodia que ainda ninguém tinha ouvido por aquelas bandas. Era Vera quem a cantava, etérea na sua camisa de linho branco. Os pés descalços.
Todos correram para ela, mas os olhos de Vera pertenciam a Júlio, doces e eternos. E só se desviaram porque este procurou a sua mãe na habitação, encontrando-a recostada na sua cadeira de baloiço, sem vida, mas com um sorriso nos lábios e um cheiro a flores do campo por todo o lado.
Envolveu-se nessa paz e enterrou-a no jardim da propriedade no dia seguinte.
Passou algum tempo. Certo dia, Júlio recebeu uma visita na sua velha casa amarela do monte. Uma mulher grata tomou-lhe as mãos, acariciou-lhe o rosto, beijou-lhe os lábios finos. Falaram durante horas pela coração, como se conhecessem o seu destino desde sempre.
E ali, naquela casinha amarela, onde um pinheiro alto deixa pingar seus ramos sobre as telhas, passaram a viver unidos por um amor nascido na adversidade.
Hoje, quando descem juntos ao povoado, abrem-se as flores nos campos ao seu caminhar, e uma melodia suave e doce espelha-se no céu, afastando a morte para outro lugar.
Dizem os da terra que sempre que o fazem, uma criança nasce no Vale.

Texto de José Ilidio Torres (ex- morador desta casa)

Criado em: 20/1/2013 12:06
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Re: Coisas que nasceram aqui
Colaborador
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12/7/2007 21:56
Mensagens: 1988

"Criou-se á sua volta uma aura de terror, contrária aquela que em tempos chamou as pessoas até si. Agora todos o olhavam com medo, como se o simples cruzar de um olhar fosse capaz de provocar a morte."


sim,há gente de grande valor que por aqui deixou os seus pensamentos. outros haverao... a seu tempo a seu tempo.

obrigado pelo texto. abraço em ti.



Criado em: 21/1/2013 17:19
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Aglutinemos nossas almas, talvez possamos dar um pouco de alegria à nossa infindável tristeza.
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Re: Coisas que nasceram aqui

Membro desde:
2/3/2007 19:42
De Queluz
Mensagens: 3731
cao
Outros haverá, sim. Alguns ainda por cá andam e outros virão, mas dos que se foram e levaram as malas carregadas com as suas letras, desses... sente-se a falta!

Um abraço igual para ti tb.

Criado em: 21/1/2013 21:27
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Re: Coisas que nasceram aqui
Da casa!
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13/12/2012 18:01
De nesta seara
Mensagens: 393
o estilo é muito bom. tem algumas incorreções mas é um texto (entre outros) para reter, tanto pela riqueza narrativa como a maestria descritiva.
O josé torres não tem textos no luso mas tem cá, como é fácil perceber, uma marca de água bem visível.

boa malha.

Criado em: 22/1/2013 10:52
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A gadanha, gadanho ou alfanje é uma ferramenta utilizada na agricultura para ceifar cereais ou para o corte de erva. A lâmina tem aproximadamente 70 cm, com formato curvilíneo e fica perpendicular ao cabo principal, no outro extremo deste.
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