Comentário a "Homilia*", de Simonekarinna*
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"Homilia*", de Simonekarinna*

diz-me
no roçar dos lábios
a cor do arrepio
diz-me
da paisagem
incompleta
a vontade do abismo

canta-me
o som luminoso do fogo
a fala macia das estrelas
canta-me
a trilha dos teus olhos
o farfalho das tuas asas
versos borboletas

pernoita
tua sede na minha
lentamente
desfaz-me as madeixas
encosta-me ao teu peito
e declama a homilia
sagrada letra do desejo


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Percurso de leitura nº 3 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Recentemente estive a ler alguns sermões de António Vieira e lembrei-me deles ao descobrir esta "Homilia", de Simonekarinna.
Segundo o "E-Dicionário de Termos Literários", de Carlos Ceia, a origem etimológica do termo “homilia” aponta para um cariz pedagógico: em grego, “homilia” significa “lições do professor” e seria aplicado a discursos de exegese bíblica. Distinguir-se-ia do "sermão" por se tratar de um texto destinado a ser proferido diante de uma assembleia mais pequena. Esse caráter de intimidade tem a ver com o ambiente geral do poema, composto numa espécie de "tom menor".

Normalmente, um texto deste tipo tem início com um exórdio, uma espécie de introdução a partir de um conceito predicável, ou seja, uma citação bíblica retirada das leituras de um ritual religioso. Neste poema, se houvesse tal conceito, seria porventura o segundo versículo do Cântico dos Cânticos: "Ah, se ele me beijasse, se a sua boca me cobrisse de beijos..."
Mas não, não temos exórdio: quando muito, talvez haja uma peroração do início ao fim, ou seja, um pedido a um "tu" que acompanhe o sujeito poético na sua confissão de sentimentos.

O formato escolhido é a estrofe de sete versos — número sagrado, perfeito e poderoso, afirmou Pitágoras — com métrica irregular, livres de rima, mas extremamente musicais. Apenas o título recorre à maiúscula; as estrofes apresentam sempre minúsculas sem a interferência da pontuação, o que confere uma especial plasticidade à construção poética. Porque dizemos isto? Veja-se como exemplo o que ocorre na primeira estrofe.

Tudo começa com a expressão "diz-me", repetido anaforicamente. O facto de não haver ponto final nem vírgulas permite uma ambiguidade muito expressiva: "a cor do arrepio" e "a vontade do abismo" serão o sujeito de "diz-me" ou serão os seus complementos / objetos diretos?
No primeiro caso, temos a personificação do "arrepio" e da "vontade", que segredam algo ao "eu" poético — como podemos pressentir através do sensual "roçar dos lábios" ou da metáfora da "paisagem incompleta", uma imensidão a que falta algo, por incompletude da visão — ou do próprio desejo, talvez? De uma forma muito condensada, adivinhamos nestas palavras a ânsia do absoluto e do infinito própria, por exemplo, do movimento Romântico do séc. XIX, que ainda hoje tem os seus cultores, nomeadamente entre os ditos poetas "góticos", que tanta popularidade possuem neste site.
No segundo caso, trata-se de um pedido a um "tu", como referimos atrás. Será ele a solução para a mensagem cifrada que, precisamente por causa desse mistério, tanto seduz o "eu"?

Segunda estrofe: situação parecida com a primeira — onde está o sujeito? onde está o complemento? quais as nuances em termos de significado? Desta vez, fica ao critério do leitor ponderar ou não sobre o valor de cada uma destas opções.
Prefiro destacar as sinestesias do "som luminoso do fogo" ou da "fala macia da natureza" (para trás ficara a "cor do arrepio", lembram-se?). É a noite que chega, incompleta como a paisagem de que falámos atrás, que canta "a trilha dos teus olhos", um caminho pedestre que se transforma em voo, no "farfalho das tuas asas". Veja-se como a aliteração do som -lh- aparece pouco a pouco a preparar, pelo som, a imagem do bater das asas da borboleta, nome transformado em adjetivo para qualificar os versos.

Já agora, a propósito de "farfalho", encontrámos um nome afim — "farfalhas" — que significa "bagatelas, ninharias". Efetivamente, são os pequenos nadas que parecem mais atrair o sujeito poético, os momentos que delicadamente pousam por um momento na memória do "eu" para depois partirem novamente.

Repare-se que a sede não se sacia na sede do amado, limita-se a "pernoitar", limita-se a uma passagem momentânea. Aliás, não será por acaso que se utiliza a palavra "sede", que também pode designar "lugar", como que a dizer que a proximidade é algo frágil e temporário, que tem de se abordar "lentamente", como se fosse a degustação de um poema.

A mesma ideia, de que algo está pendente ou latente, e a mesma atenção ao detalhe, aparecem nos versos seguintes. O cabelo não é agarrado com o vigor da luxúria — é um simples "desfazer de madeixas". O abraço voluptuoso dá lugar ao casto "encostar-se no peito" do outro. A propósito do verbo "encostar", lembrei-me de um belo poema de Carii (link), que tive a oportunidade de comentar aqui há uns anos.

Termina o poema com a definição de homilia: trata-se de uma "sagrada letra do desejo" que se "declama". Ou seja, o desejo vive na sacralização da palavra, cujo lugar privilegiado é a própria poesia, que convoca quem se ama e quem a ama.
Voltemos ao Cântico dos Cânticos: "Eu estava dormindo, mas meu coração velava. / Atenção! O meu amado está batendo..."

Criado em: 17/11/2021 15:57
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Re: Comentário a "Homilia*", de Simonekarinna*
Administrador
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14/8/2018 21:45
De काठमाडौं (Nepal)
Mensagens: 2221
Meu caro Benjamin teus estudos sobre o poema são invejáveis, foste buscar elementos onde eu jamais me atreveria, o que mostra teus conhecimentos apurados, o que a língua portuguesa certamente te agradece.
Mas permita-me todavia, com respeito à sua opinião assentar uma um pouco diversa? É que neste trecho você disse: "Já agora, a propósito de "farfalho", encontrámos um nome afim — "farfalhas" — que significa "bagatelas, ninharias".
Não tenho esses significados para a palavra farfalho ou farfalhas. O farfalho é um ruído não bem definido, um rumor. Tem origem no castelhano e para nós define o ruído das folhas secas sendo pisadas. "... E ouviu farfalhar o mato, como se por ele arrastassem um corpo manietado..." Monteiro Lobato, in Contos Completos, fls. 125. Ed. Biblioteca Azul
Por ligação às folhas secas também o barulho das asas de insetos são definidas por farfalhar, farfalho.
Quanto ao "diz-me", na minha visão o sujeito é oculto, "tu". Aliás este é o sujeito de todos os verbos das duas primeiras estrofes.
Essa primeira poderia ser 'traduzida' em: "Diga-me qual a sensação do contato dos (nossos) lábios" Aquele(a) que fala no poema convida seu interlocutor a contar de suas sensações.

Desconstruída a frase pode-se melhor observar a qualidade poética dessa meia estrofe, uma pergunta corriqueira se torna uma figura onírica e cheia de mistério, sensualidade e melodia: "diz-me no roçar dos lábios a cor do arrepio".
No surrealismo a substituição de palavras dando-lhes um sentido que usualmente não têm é bastante usado: "a cor do arrepio". Ora diríeis arrepios não têm cor. No surrealismo têm, essa "cor" substitui a palavra "sensação". Mas essa ligação de cor com sentimentos ou sensações não vive apenas no surreal, nem foge ao popular: "Ele ficou roxo de raiva", "branco de medo" "Ele sorriu amarelo".

No mais - e há tanto mais - acho especial essa tua iniciativa de levar a uma análise além da usual de alguns poemas. Certamente serve de subsídio a todo poeta por mais letrado que seja.

Este poema em especial, pela identificação que tenho com o estilo, consigo fazer uma interpretação creio que bem literal de seu conteúdo. Na verdade eu "vejo" o desenrolar da ação. Isso certamente decorre dos méritos de sua autora que ao criar imagens distintas do real, consegue manter esse liame com os acontecimentos que narra.

Grato pela oportunidade, escuse-me contestá-lo. A você e à poetisa minhas saudações.

Criado em: 17/11/2021 22:46
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"Somos apenas duas almas perdidas/Nadando n'um aquário ano após ano/Correndo sobre o mesmo velho chão/E o que nós encontramos? Só os mesmos velhos medos" (Gilmour/Waters)
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Re: Comentário a "Homilia*", de Simonekarinna*p/Benjamin
sem nome
*Benjamin, em primeiro lugar sinto-me honrada por ter um escrito meu," despido " assim, pelo teu olhar, num comentário que é mais, é uma leitura minuciosa, do que está e não está escrito. Eu fiquei aturdida! Rsrs.
Logo que vi que comentaste minha postagem, tive que recuperar o fôlego, pois considero-te Poeta admirável. Acompanho tua produção, faz tempo. E aprecio muito, Poesia criada com zelo, dom e domínio total da nossa maravilhosa Língua Portuguesa. Então, até estou sentindo-me um pouco poeta, pois não me considero. Eu me defino como uma pessoa que ama Poesia, que ama as Palavras e que escreve versos.
Eu diria, se fosse significar meu labor da escrita, que escrevo por instinto, intuição e livre inspiração. Sem estilo definido, sem regras, versos brancos ,alvos como a neve, rsrs. Versos livres, sem métrica, sem rimas perfeitas, porém, realmente qdo escrevo levo em conta a musicalidade , como se eu "cantasse" o que escrevo. Fiquei feliz por teres sentido esse detalhe.
Eu li e reli tantas vezes, pois fiquei extasiada como tu, com cada parte que analisaste, absorveste, em linhas gerais, como eu escrevo o amor que sonho. Como sagrado, como uma paixão devastadoramente amorosa. Tal qual Cantares, esse livro da Bíblia que é uma homenagem ao pleno Amor.
Meus escritos de Amor são assim, rendição suave, porém desejosa.
Quanto forma, vocabulário, metáforas, me são puro prazer, pontuar as imagens amorosas com a riqueza da nossa Língua Portuguesa. Sou fascinada pela Palavra. Digo que não sou Poeta, mas abuso da licença poética, como disseste, usando um substantivo, adjetivando outro...pensando na cor do arrepio, som luminoso do fogo...é, eu abuso. Rsrs. Também aprecio oferecer ao leitor, que se envolvido pelo que escrevo, possa deambular e se apropriar do meu sentimento...
Enfim, tu me deste um presente imensurável, que guardarei como um tesouro, pois nunca recebi algo assim, um comentário/análise de algum escrito meu. Apreciei tanto, que ouso dizer, que envolvida pelo que escreveste, por alguns momentos , senti-me Poeta.
Grata pela generosidade deste momento que me deste.
Abraço de gratidão.
Simone karina
Karinna*
K*

*ah, eu escrevo recitando, rsrs, pois como não tenho ligação com regras, criei o meu próprio estilo, de que preciso sentir a harmonia/ musicalidade do que estou escrevendo.

Criado em: 18/11/2021 7:05
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Re: Comentário a "Homilia*", de Simonekarinna*p/Sergius
sem nome
*meu amigo, grande Poeta, complementaste com primor a análise do Poeta Benjamin.
Nossas escritas se conhecem...aprecio e inspiro-me muitas vezes nas metáforas que usas, como uma tela surrealista.
És um artista, das palavras, das tintas e pincéis.
Sinto-me honrada também pelo teu olhar cirúrgico em meus escritos, meus ensaios, pois tu bem sabes como te considero.
Obrigada de coração
Saudações de amiga e fã
S.k*

Criado em: 19/11/2021 4:58
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