Comentário a "Todos os nadas", de InchNails
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"Todos os nadas", de InchNails

"Com estas flores pensava, doce donzela, adornar teu leito e não espalhá-las sobre tua sepultura."
(Hamlet) Cena I, Ato V

A tempestade quente derruba o nome
Por excursão na casa dos todos os relapsos
De paredes submersas, dos olhos insones
Cada dia é igual ao mesmo que te reparto

Cada hora é contada pra te vender depois
Na escuridão dos cegos que te louvam
Pela ideia confiável de sempre seremos dois
A mentira rarefeita, em asas que te povoam

Até.. um palmo extra do chão pra te fugir
Da indecisão a reinar o tempo e assim, seguir
Uma carta pra deixar acesa, sob fogo fátuo

Uma água de beber até os seus quadros
Por evento da memória irreal, provocada
Nessa soma de todos os dias, todos os nadas


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Percurso de leitura nº 13 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

O título deste poema constitui uma antítese que conjuga as ideias de tudo/nada, que são a base da construção do texto, mas não o único contraste que poderemos encontrar – há outros, como o da água e do fogo, da luz e da escuridão, da permanência e da transitoriedade.

O primeiro verso começa com a palavra "tempestade", que tem uma etimologia curiosa. Começou por estar relacionada com a ideia geral de tempo. Aliás, o mesmo acontece com a palavra "temporal" que, como adjetivo, designa algo relacionado com tempo, mas, como nome, refere-se a um estado meteorológico de grande turbulência.

O lado destruidor deste fenómeno é confirmado, logo a seguir, pelo verbo "derruba" que tem como complemento um "nome", o sinal que nos distingue, a nossa identidade. A quem pertencerá este nome? Uma associação possível seria ao vocábulo "relapsos" – referindo-se a alguém que é obstinado, que insiste em algo, que não desiste mesmo que saiba que se trata de um erro.

A tempestade invade a "casa" destes relapsos e inunda as "paredes" (os fundamentos) do espaço onde vivem esses seres que reincidem nas suas falhas ou transgressões. Talvez por isso é que possuam "olhos insones", condenados a uma eterna vigília.

No último verso desta quadra, há uma nova referência ao tempo ("cada dia"), que é distribuído, compartilhado com um misterioso "tu", que faz a sua primeira aparição no poema.

Assim sendo, conjugando as ideias até agora apresentadas, este "eu" e este "tu" serão, portanto, os "relapsos" "dos olhos insones", que veem o seu "nome", a sua identidade, destruída por essa tempestade, por esses dias iguais que dividem um com o outro, com teimosia, apesar de tudo.

A segunda quadra inicia-se com nova referência temporal – "cada hora" – que é "contada" (contabilizada ou narrada, as duas aceções são possíveis neste contexto). Com que finalidade? Para vender ao "tu", que compra todos esses preciosos momentos, mesmo que o "eu" alerte para uma única certeza: de que "sempre seremos dois", nunca haverá a fusão numa só identidade.

Alusão ao amor? Parece que sim, sobretudo se tivermos em conta a epígrafe do poema, que se refere ao momento da tragédia de Shakespeare em que Hamlet descobre que a sua amada Ofélia está morta. As flores são, ao mesmo tempo, uma homenagem à sua beleza e um tributo ao amor interrompido pela morte. Esta personagem poderia, tal como o sujeito poético, concluir que as ilusões de permanência serão sempre "escuridão dos cegos", "mentira rarefeita"...

"As asas que te povoam", deste ponto de vista, poderão ser lidas como quimeras de eternidade, que o "eu" se apressa em descortinar como apenas "um palmo extra do chão". O sujeito sabe que "reinar o tempo" é impossível, todavia, há uma "indecisão" que talvez tenha a ver com a impetuosidade dos sentimentos, que impedem uma total racionalidade.

O "fogo fátuo" que incendeia uma "carta" é uma imagem muito forte do que este poema pode representar: a notícia simbólica da transitoriedade da existência e das emoções, que inexoravelmente passarão a frágeis imagens ("quadros"), simples "memória irreal", uma soma de "dias" e de "nadas" que, apesar de tudo são "água de beber" – são eles que, nos seus paradoxos e vulnerabilidades, constituem essa heresia (cf. tags) a que damos o nome de vida.

Criado em: 14/8/2022 17:47
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“Tod'oscogumelos se comem, alguns uma vez apenas”.
sem nome
“Todos os cogumelos se podem comer, alguns só uma vez”.

Criado em: 4/11/2022 17:44
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