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a morte depois da vida - prosa

 
 


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


silêncio total. a solenidade ainda vive. ainda é urna. a madeira está intacta. encerada. os bronzes polidos. as cordas sedosas e os castiçais perfilados – o momento é como imaginei – as feições são brisas. trazem palavras misturadas. escuto-as com dificuldade. apreendo que algumas trazem tristeza apenas por dentro. outras. por dentro e por fora. são elegantes. nunca imaginei ver palavras elegantes no conteúdo. com linhas. com glamour – ouço-as. sinto-as como melodia. talvez Hallelujah do Leonard Cohen – mas as mais divertidas são as curiosas – afinal morrer não acontece todos os dias. é obrigatório aproveitar – [coitado. afinal de que embarcou?].[ também é preciso ter galo]. [foda-se. logo hoje que está tão bom tempo] – mas também há palavras fodidas. e mesmo depois de morto temos que as aturar – estes caralhos não desistem e não descansam nunca hipocrisia – sabem que é a ultima oportunidade para usarem o veneno e sem dó. partem para o mais perto do que já foi vida – sentem-se bem por aqui. afinal estão perto do que sempre foram. nunca tiveram vida – rebobinam a matraca atrás e vomitam mais um vez o chorrilho de impostorices – [coitado. tão bom homem]. [uma perda para quem de perto tão bem o conhecia com eu]. [nunca mais serei o mesmo]. [tenho pena é dos filhos]. [éramos tão amigos] – filho da puta de mentiroso! – é nesta altura que me arrependo de estar morto. se soubesse que estes cabrões apareciam. tinha evitado morrer a um dia da semana – esta gente não perde fins-de-semana. mas também são tantos que algum filho da puta tinha que aparecer – que se fodam – bonito é o alinhamento das campas perfiladas. parecem todas iguais. parecem, imagino eu, que estou deitado nesta caixa rectangular e estou em crer que as medidas se acertam pelos meus pés – a almofada é uma merda. alta e dura está a dar cabo do meu pescoço. o pano rendado feito de fibras sintéticas faz-me comichão na ponta do nariz. estou com medo de espirrar. esta gente. é bem capaz de começar de novo a fazer-me respiração boca a boca – estúpidos, nem imaginam que não quero voltar para aquela merda – sorrio com o destino. esta tumba está virada a norte. tenho um eucalipto por perto para me fazer a sombra. quero o sol pelas costas. estou farto de esperar por ele e agora parece-me que está prestes a juntar-se a esta seita de impostores. acabem com esta merda depressa – levem-me para a cremação. aí. o fogo queimará todos os vermes e impostores.

 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
Valdevinoxis
Publicado: 18/04/2010 21:57  Atualizado: 18/04/2010 21:57
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 Re: a morte depois da vida - prosa
Pois é... e viva a liberdade na escrita.
Este texto deixou-me um misto de agrado e desagrado. Está bem escrito e marca um estilo veemente mas banaliza a revolta com palavras que nos momentos que correm todos querem usar como se fossem um grito irreverente. Não tenho nada contra e penso que o seu uso tem um lugar de excelência mas parece-me que o exagero as está a transformar em coisas despropositadas e feias.
As frases curtas são bem conseguidas e têm o resultado dramático que (parece-me) é pretendido.

Valdevinoxis


Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 18/04/2010 22:00  Atualizado: 18/04/2010 22:01
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Mensagens: 3422
 Re: a morte depois da vida - prosa
hoje fala-se muito de morte por aqui...

De certeza que se sentissemos o que acontece depois da morte, não estaríamos longe do que descreveste... a hipocrisia, o fingimento...

um abraço


Enviado por Tópico
Margarete
Publicado: 19/04/2010 21:12  Atualizado: 19/04/2010 21:12
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 post mortem ao sampaiorego
a morte dá-me um tesão do caralho.nela escrevia livros como quem fica calado.
excelente prosa, como já é teu hábito. não vou estar aqui com rodeios, és, neste preciso momento, quem mais gosto de ler. tal é o que em nós converge.

beijo,
mar.

p.s. surpreendes-me como sempre.