Poemas : 

terça-feira

 


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


quero escrever mas as mãos estão trémulas. não sei se é o medo de saber que tenho que escrever sobre um dia que afinal é igual ao de ontem – a diferença é que este vem depois da segunda-feira. vem depois do despertar – estas obrigações sempre me mataram – o dever sempre me fez tremer. deixa em mim um gosto ao cumprimento obrigatório – não sei bem o porquê de gostar de escrever. ontem respondi a uma mensagem. dizia que escrevo para me sentir mais perto do mundo que me compreende. esta é a melhor definição para alguém como eu. estar mais perto de quem me entende sem nunca ser um deles – então escrevo. gosto de escrever. e assim sentir mais verdade nas palavras. que é como quem diz. verdade nos meus actos – gosto de me sentir em cada adjectivo. mesmo aqueles que se transformam com o tempo – é este o risco de quem escreve no presente um passado. o futuro quase não há. lemos quase sempre o agora. independentemente de crescermos no meio das palavras que nunca serão outra coisa que não o dia que achamos que as entendemos – saio por mim adentro a correr. e trago tudo o que pode interessar aos meus seguidores que entendem os meus “eus” e que penso existirem por trás de cada palavra que lhes entrego – vomito-as do meio das minhas agonias para este papel que em tempos não muito distante foi branco – há dias que estou tão só que apenas quero ver as minhas palavras no olhar dos outros. acredito que me escutam – é nesta loucura que volto fundo para dentro de mim. tento encontrar-me. mas estou só. descubro apenas aqueles dias em que eu queria partir para lá da minha montanha – acreditava que a dor aqui era mais séria. mais crua. admitia uma escolha que não fiz ao meu nascer. tudo cresceu mais rápido que a camisa que um dia quis vestir limpa. florida e com um bolso enorme de tolerância. rasgou-se pela força da desilusão – queria encontrar as promessas que me fizeram nascer a sorrir. descobrir um céu novo que me garantisse que seria apenas mais um neste mundo de muitos “uns” – mas a dor persistia. enroscava-se em mim como o polvo de Sinbad da lenda dos sete mares. e as noites eram lutas intermináveis – nessas noites. a vergonha matava-me. queria tanto ter força para deixar de sofrer. para rasgar o papel que afinal era uma carta cheia de desculpas – nessas noites. a dor era tão forte tão forte. que todo eu chorava. não apenas os olhos. mas as entranhas. os ossos. o olhar. a espinha que ainda me mantinha curvado. e das mãos caiam pedaços da carne que herdei de uma família que queria muito mais de mim. e eu. desfeito. rasgado de cima a baixo. estripado de tudo que me fazia ser eu. aquele. que sempre se entregou ao amor pelo amor – a noite. consumia tudo que eu tinha para além da própria dor. e de dentro desta. apenas me restava a força para abrir os olhos com o sol da manhã – como eu queria ser feliz. mas parecia-me tudo tão distantes – as soluções. essas. estavam para lá de uma montanha que eu próprio construí – queria tanto ser genuíno que não fui suficientemente flexível para ouvir as vozes discordantes – agora. alguém me diz que vou ficar só. como se alguma vez estivesse acompanhado – a última vez que alguém me garantiu essa não solidão. obrigou-me a levar uma cartilha branca. uma vela de cera rendada em laço de seda da índia. estava eu de calções de veludo. e com um laço apertava a camisa de folhos. nos olhos, a esperança de quem acreditava que tudo fosse verdade.
 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
Margarete
Publicado: 01/06/2010 21:48  Atualizado: 01/06/2010 21:48
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Usuário desde: 10/02/2007
Localidade: braga.
Mensagens: 1199
 terça-feira ao sampaio(r)ego
para ti nesta terça-feira.
"
"Cubro toda a terra daqui.
Dizem que é efeito das ilhas, já o pressinto.
As nuvens enegrecem no canal enquanto te digo isto.
Há também algo de nocivo nisto, eu sei. Tu sabes.
Talvez venha a tornar-se a voz numa sombra – é o
que dizem, ao chegar a estação das beladonas.
Foi após embarcares que senti tudo isto
que comecei a confundir a noção dos dias,
o tempo que trazemos nos relógios.
Chego a tremer com o silencio do planalto,
com o cheiro a cânhamo nas furnas e
da neblina limosa formando-se em torno delas.
Acontece-me ter perdido alguns nomes,
outros lugares parecem-me vagos,
ausentes noutro corpo talvez esquecido, em extinção.
Mas descansa não é por vontade, é mesmo assim, já tinha dito.
É talvez porque o que fomos se apagasse e
só pudéssemos esperar
e uma sombra nos cresça na voz, cada vez mais.
Tu dirás isso ai à tua maneira, se
quiseres – já agora não o esqueças.
Vou ficando semanas seguidas cá em cima,
sem descer à costa.
Aqui aguardo que me tragam as cartas, as tuas,
e não julgues que não dei conta dessa angustia.
Se soubesses como me parecem sempre um eco, o
pressagio de um mal que esta para acontecer.
Mas não são sempre elas isso mesmo,
uma voz sustentando-nos, um
medo na parte mais desconhecida da memória?
[...]"
rui cóias




http://www.youtube.com/watch?v=OB5Qoy8JHdI


Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 02/06/2010 19:27  Atualizado: 02/06/2010 19:28
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Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: terça-feira para sampaiorego
uma terça-feira absolutamente intemporal,embora datada.daqueles textos que deveriam ser preservados da passagem do tempo. digo eu...mas quem sou eu? não tenho voto na matéria nestas coisas do valor que se dá às coisas.deixarei escrito,porém,sempre que o vislumbrar.talvez não seja a única a dar um uso especial aos olhos,quem sabe?...

tivesse eu a capacidade de gravar pedras na História e saberia exactamente que palavras dos outros lá colocar.pena que quem o faça ponha muitas vezes outros interesses à frente do que seria interessante, em termos artísticos.mas enfim,sabemos do poder do dinheiro e dos favores na vida dos homens.não faz mal.aqui te deixo o que posso,mesmo que nada "valha" também: a minha admiração genuína pela tua escrita.

abraço

alex