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talvez um monólogo com deus [1/4]

 


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


1.
fazia frio dentro de mim. foi a primeira vez que senti esse frio. no entanto o corpo. não reclamava agasalho – mas bem lá dentro. bem lá para o fundo. sentia tudo a gelar – estava sozinho. como sempre tinha as mãos metidas nuns bolsos fundos e sem fundo. tentava encontrar um pouco de mim. algo que ainda estivesse quente – sempre procurei o que não existe. pelo menos em mim – já nos outros. vejo sempre bandos de pássaros a voar rumo às temperaturas do sul – nem sei o nome desses pássaros. são bandos de pássaros. voam com asas carregadas de coisas da vida. pedaços do tempo – lugares de quem vive com horizontes certos – já não tenho o tempo numerado. perdi-me dentro do corpo – já não há movimento de rotação. a noite nunca clareia. e a cada hora. uma visão do sol pintada na esperança morta pelo instantâneo do mesmo escuro – procuro-me. levo a ponta dos dedos até aos mais recônditos espaços da minha carne. perfurada pela escara de viver sempre na mesma posição – com voracidade. mexo as mãos. é assim que sinto que estou vivo – entrelaço-as. deixo os dedos compreender que é na procura que acabo por aprender a sobreviver – faço dor. cerro os dentes. os olhos esburacam-se e a pele enrodilha-se na gritaria que me sobressalta sempre que tento pensar – caio no fundo de mim. queria tanto um calor. queria tanto um pouco de aconchego. no fundo. bem lá no fundo. existe sempre uma réstia de esperança. e eu queria tanto encontrar um braseiro que me atenuasse este frio estranho – às vezes. quando tento encontrar-me. acredito que talvez este seja o frio de fantasmas a vaguear dentro de mim. talvez procurem algo que sei que não tenho. nunca tive nada – estes desejos. com o tempo morrem. morrem como todas as primaveras que inventei – mas o tempo passa. e estas primaveras que faziam flores. não mais voltarão a ter inverno. mesmo que com menos sol – olhei para a distância que havia entre os meus olhos e a vontade de ter outro futuro. percebi que nunca iria encontrar nada em definitivo. o meu destino será sempre uma disputa de tudo que cresce num pedaço de mim vagabundo – este frio nasce cada vez mais frio. alimenta-se desta minha vontade de querer mais. na vontade louca de transformar tudo. em cumes –
 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/11/2010 01:01  Atualizado: 15/11/2010 01:01
 Re: talvez um monólogo com deus [1/4]
Eu também vejo nos outros todos os pássaros voando... e o meu céu sinto-o tão vazio, por vezes as estrelas não brilham, ou por vezes não à sentimos brilhar, encobertas pelas nuvens... elas estão lá...

gosto do teu poetar.

beijos.


Enviado por Tópico
Liliana Jardim
Publicado: 15/11/2010 02:02  Atualizado: 15/11/2010 02:02
Usuário desde: 08/10/2007
Localidade: Caniço-Madeira
Mensagens: 4412
 Re: talvez um monólogo com deus [1/4]
Ola Sampaio

Um monologo com Deus e com os homens
Gostei de te ler e de me ver reflectida na transparencia das palavras escritas numa introspeção sequencial de uma alma insatisfeita e sempre a se encontrar...

Beijinhos
Um momento unico de leitura

Tudo de bom para ti


Enviado por Tópico
ÔNIX
Publicado: 15/11/2010 10:11  Atualizado: 15/11/2010 10:15
Membro de honra
Usuário desde: 08/09/2009
Localidade: Lisboa
Mensagens: 2683
 Re: talvez um monólogo com deus [1/4]
Gosto muito dos teus diálogos, porque Deus está em mim quando te ouço e sei que Deus está em ti, quando me sentes a ouvir-te

Gosto das tuas palavras. Gostava que te pudesse ver mais por aqui

beijo

Dolores Marques


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/11/2010 10:32  Atualizado: 15/11/2010 10:32
 Re: talvez um monólogo com deus [1/4]
Sabes, Sampaio, fiz deste diálogo um "triálogo"... entrei na conversa, como quem entra em sua casa, descalcei os sapatos, despi o casaco pesado (porque não era o corpo que reclamava agasalho...) e, mesmo a gelar por dentro, exactamente com os mesmos frios que me contas, também eu, também eu, preciso estar desenvencilhada de casacos e estorvos. Sei lá, talvez ainda restem neves nos cumes que esperam e quero sentir-me parte dessa moldável pureza... (e, todos sabem, depois de mexer na neve, as nossas mãos ficam extraordinariamente quentinhas...)

Beijo.


Enviado por Tópico
lobodaescrita
Publicado: 17/11/2010 16:38  Atualizado: 17/11/2010 16:38
Participativo
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 Re: talvez um monólogo com deus [1/4]
Eu não sou um comentador nato mas este escrito tocou-me muito, alem de estar bem escrito reflecte muito do frio e da procura de todos nós
abraço