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nunca acaba amiga

 


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


nunca acaba. as mãos nunca acabam. elas escrevem como sempre. com o mesmo cheiro a mar. com a mesma gaivota a voar em círculos. bem sei que os círculos estão cada vez mais fechados. mas não fiques triste. só assim estão porque aprenderam a amainar os ventos. mesmo aqueles em que o vento se faz a norte dos olhos. lá para os lados do desalento. do fim do mundo – nesses dias amiga. nesses dias os olhos procuram sempre o fim do mundo. muitas vezes perdidos. desnorteados. confundidos. amedrontados pelo que ouvem aqui e acolá – mas sabes amiga. eu sei que sabes. sei tanto de ti que posso dizê-lo com toda a certeza: tu sabes que o fim do mundo fica para lá do horizonte. o que vejo todos os dias ao entardecer. quando o sol cai e a escuridão rompe pelas palavras como um farol pelo mar dos que escrevem com a noite. este farol minha amiga cuida de mim. não. cuida de todos aqueles que se atrevem a escrever com o corpo encrespado. como tu amiga. como eu que sou teu amigo – procuramos tudo dentro do corpo. até as palavras – muitas vezes sem o corpo compreender a carne cansa. desiste do belo. enruga. começa a cair aos pedaços como se de lepra se tratasse – sabes amiga. descobri que as letras também caem. caem porque é outono no corpo. e no outono as folhas cobrem sempre o chão em silêncio. o sol mais pequeno amarra-se às árvores com a luz que sobrou dos dias que já foram grandes. segura pequenas primaveras – também nós seguramos primaveras. e ficamos ainda mais belos quando não temos palavras um para outro. belos porque sabemos existir em silêncio – mas minha amiga. as letras não enganam o sol. o vento frio anuncia as primeiras geadas nas mãos onde ainda cabe tudo. mãos que apertam as janelas contra o peito que nunca acaba de encher – mas a vontade ainda é silêncio. a vontade ainda é outono. ainda há folhas por cair. ainda há outono no ar. outono dentro da janela – lá fora. do outro lado da janela que me segura. as árvores vivem agora despidas – no chão as folhas. nos ramos demoram-se os últimos sorrisos. como é possível sorrir amiga quando o corpo está nu. e o vento é um mundo desconhecido – ainda ontem era verde. ainda ontem o mundo era verde. verde esperança. ainda o tenho á frente dos olhos. dentro das mãos. dentro da janela. dentro do hoje que quero falar contigo em silêncio verde. com palavras fortes. verdes. capazes de resistir ao vento que teima em correr entre os dedos verdes também – hoje amiga. hoje minha querida amiga. que o dia está com um sol que só apanha metade da janela onde estou todo. e tu. a todo momento podes aparecer em silêncio. e em silêncio dizes-me. dizes-me silêncio. porque as folhas continuam a cair em silêncio. o mundo não acaba com os silêncios enquanto houver árvores. e há tantas árvores despidas como eu. como tu. despidas pelo outono. despidas porque gostam de meter as mãos por dentro de si para aquecer os gestos que querem deixar partir com as folhas de outono. folhas das árvores abertas ao tempo. e são tantas. sabes amiga são tantas. conto uma. duas. três. quatro. cinco e mais e mais e mais. cada vez mais mundo. e o tempo a passar entre elas em forma de vento – hoje minha amiga. é outono. é outono porque me despi para ti com palavras feitas de folhas. é um outono bonito. mesmo estando eu deste lado da janela e as folhas do outro lado. mas estou feliz. estou tão feliz que estou a fazer de conta que sou o vento. amarro nas folhas que fazem o outono e sopro para ti. sopro para o teu fim do mundo. sopro com o peito cheio de palavras que ficaram por dizer. mas se vires folhas no ar. belas. harmoniosas. livres. sorridentes. não tenhas medo. é o meu outono a fazer primavera na tua vida.
 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 22/05/2011 23:10  Atualizado: 22/05/2011 23:10
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 17960
 Re: nunca acaba amiga
Aqui as árvores tem alma, as palavras dançam como folhas, o silencio suspira amizade, o papel vela cada folha caída... Agradecendo a partilha. bjs


Enviado por Tópico
Carlos_Val
Publicado: 22/05/2011 23:37  Atualizado: 22/05/2011 23:37
Da casa!
Usuário desde: 11/03/2011
Localidade: Braga a residir em Gaia
Mensagens: 421
 Re: nunca acaba amiga
acabo de ler um texto nas emoções existências à flor da pele de uma emoção deveras emocionante e muito bem delineado.

abraço poético

Val


Enviado por Tópico
AnaMartins
Publicado: 24/05/2011 16:09  Atualizado: 24/05/2011 16:10
Colaborador
Usuário desde: 25/05/2009
Localidade: Porto
Mensagens: 2220
 Re: nunca acaba amiga
Em silêncio, procuro palavras dentro de mim para te falar da sensação de alma cheia de tudo e ao memso tempo despojada de tudo que é ler-te.

Obrigada por existires. Pelas tuas palavras existirem.

Beijos.


Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 02/06/2011 00:34  Atualizado: 02/06/2011 00:34
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: nunca acaba amiga
Às vezes, amigo, caem-me palavras líquidas dos olhos de te ler...


Enviado por Tópico
sampaiorego
Publicado: 01/11/2011 17:19  Atualizado: 01/11/2011 17:19
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2010
Localidade: algures virado para o mar com gaivotas
Mensagens: 1147
 Re: nunca acaba amiga
teresa teixeira – sterea

como dizer-te que as tuas palavras sufocam – o ar desaparece. um nó feito de comoção aperta. e eu sem saber deslaçar esta aflição – na cabeça nascem atalhos que me levam para perto do que me dizes – há palavras que são eternas. e o corpo certifica para sempre o que é ser feliz – a cadeira ainda é a mesma desde aquele dia em que te li pela primeira vez. só o couro perdeu a cor. gastou-se na procura de um lugar seguro onde guardar as palavras que me deixas – escrever é bom – saber que me lês é especial – sempre que me escreves deixas-me cansado – fico sem saber o que fazer ao coração – deito as mãos ao peito e sei que ele bate das tuas palavras. sempre certo. ritmado pelos afectos de quem gosta de ler o que as palavras escondem – e o pensamento sem nada dizer. perdido nas entre linhas da vida que deixas tombar sobre o papel. feito de bondade – as estrelas brilham mesmo quando não há noite – o tempo é a tua alma. fez-te palavra – resta a memória – o que seria dos homens sem memória. sem nomes. sem lugares. sem abraços. sem bondade. há rostos que não se podem esquecer. momentos – momentos escritos são para sempre – memória – e leio e releio e o corpo ali. aqui. acolá. os olhos parados em sorrisos. eternos – não há força que desocupe o tempo quando dizes que as palavras são feitas para abraçar. e eu a agigantar-me ao mundo. a acreditar que o passado nos teus olhos é esperança. até a dor termina quando sorri pela vontade de te dizer: obrigado. obrigado por me fazeres feliz. obrigado por me ajudares a escrever. obrigado por me ajudares a ver o caminho. certo pelas palavras com que me abraças – memória – o que seria dos homens sem memória – há um outro tempo na tua escrita desigual. mulher-abraço. mulher-doce. mulher-dor. mulher-esperança. mulher-futuro. e uma mulher-mulher capaz de escolher a bondade. estender as mãos à vida. à amizade – e eu deste lado a ouvir o que escreves – ouço palavras como se fossem ditas ao ouvido. e o nó aperta. sufoca. e o ar foge. e a dor de estar feliz aqui dentro a dizer-te: doce memória. bendita memória – e abro mais um texto. e lá vens tu devagar. em silêncio é primavera. pelas rosas brancas – as amendoeiras sempre dão flor. todo o ano. o fruto pendurado em palavras que não acabam – e lembro vinhas do douro a correr rio. é outono. à lareira chama-se o inverno. largam-se as palavras. frias. à sombra do que arde. é quando a tristeza volta às noites longas. aqui o tempo parou. para sempre – e eu estou no meio de palavras-bondade. palavras-mel. palavras-saber – memória – quando escreves há em ti palavras que me apertam e só a dor. em sorrisos. me faz lembrar que sou mortal – quanta bondade. quanta ternura. quanta beleza há nesses olhos que sabem ler estas minhas palavras tortas. loucas. perdidas no tempo que imaginava só meu. pela incompreensão de nem eu as entender – e eu ali a contar pedras no chão. juntava-as com o arrastar das pernas de um lado para o outro. uma a uma. até fazer um muro que nunca mais me deixou ver para outro lado. um muro de vergonha. um muro apenas atravessado pelo som que anunciava a partida dos sorrisos. em bocas que nunca souberam dar um beijo – um beijo teresa. um beijo na face que já não tinha lado – não há lados para aqueles usam palavras para acarinhar. para dizer gosto – gosto porque gosto. porque é quente. é verão. porque é frio. é inverno. e no teu tempo inventas outro tempo. o tempo do que é desigual pela força de um outro tempo. feito à força de nunca veres o erro nos outros – sou erro. mas depois de te ler. volto a ser apenas eu. desigual sim. mas eu. assim como sou em cada palavra que escrevo feita memória – tu nasceste com essa grandeza de saber ler as palavras com abraços. e depois. escreves essas coisas que me fazem ver novamente o tempo como se hoje fosse o primeiro segundo de um dia que nunca tive. um tempo novo onde o erro ainda não tinha nascido – memória – e os muros voltam a cair. as pernas voltam a fazer cair as pedras para lá das nuvens onde vivem os arrependimentos que nunca consegui escrever. linhas em branco. imagino eu – não podes. nunca mais. fazer destas coisas teresa. estou sem ar e as palavras respiram com dificuldade e não tenho forma de te dizer obrigado. sem ter de que parar a meio para voltar a ganhar fôlego – estou cansado. estou cansado mas feliz. por ainda conseguir dizer-te obrigado. obrigado por manteres a memória como um abraço feito de palavras que não sei esquecer – obrigado teresa. até sempre –