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borboletas de agosto - 5 de 5

 


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


5.

nesta casa lágrimas não sossegam horas e os corpos deambulam sem saber como esconder a dor – fugi. passo a passo descaí pelas escadas que sempre fiz a correr – porquê correr se o tempo está parado – abro a porta de madeira pesada. pintada de vermelho bem-estar. tão antiga como eu. os vidros protegidos por ferro forjado em harmonia com o tempo passado. acautela o interior com curvas e contra curvas apertadas – num dos vidros um postigo. abro-o de tempos a tempo. espreito o mundo – noite cerrada. caio na rua que sempre foi minha. não há vida no passeio das pessoas. nem carros a ziguezaguear – na rua que me viu crescer não há nada. nem tristeza. nem dor. nem lágrimas. nem flores enroladas em círculo. tudo está como ontem. silencioso. e até o vento corre em pézinhos de lã para não ser barulho – o silêncio é cada vez mais silêncio – as casas paradas de persianas fechadas anunciam recolha. talvez os vizinhos tenham resolvido morrer um bocadinho por ti. reconfortados nos seus sofás. isolados na dor. relembram os sorrisos com que davas bons dias. dobravas sempre o corpo em forma de vénia – havia alegria nos teus bons dias – bom dia sr. manuel. como está – e o sol caminhando para a vertical – também eu deambulo de um lado para o outro. olho o céu. a estrela polar mudou-se para trás da casa – ao cimo da rua a cassiopeia. perdida nos seus ésses habituais – resistem os candeeiros de luz a cair devagarinho em chão desenhado por pedras às cores – hoje a luz é diferente. está ali unicamente para esconder as sombras. não quer iluminar amargura. escutou a dor do outro lado da porta. sabe que o corpo está cansado e as lágrimas presas por um fio – olho o tempo no meio de nada. cigarro na mão. a cinza cai pela força da gravidade. e a nicotina amarelando memórias – tudo parece que já foi há tanto tempo – sento-me no meu carro. os assentos vazios. motor parado. o limpa pára-brisas estático. luzes apagadas. o pé no travão e a vida engrenada em marcha atrás – as mãos amarradas ao volante equilibram o corpo em curvas feitas de dor. conta-quilómetros a zero – sufoco. o peito alarga. os olhos incham. a boca treme. o corpo vacila. o coração bate nos ouvidos e o desespero a atingir as defesas de quem tinha prometido não chorar – não sei o que fazer. não há espaço entre mim e o volante para dobrar o corpo. só posso olhar em frente – estou desesperado. destroçado. devastado. com toda a força amarro o volante – a noite não abranda a dor. sei que estamos sozinhos. eu no carro perdido entre beatas e tu numa sala escura. sem deus. sem santos. sem nenhum bater de coração – não acredito em mais nada. não há deus capaz de me convencer que as partidas fazem parte da vida. que a dor purifica o homem. e todo o filho tem que sofrer como deus sofreu pelo seu. não acredito neste deus – desespero brutal – não quero continuar em silêncio . ligo o rádio. ouço aquela que será para sempre a nossa música. spiritual [charlie haden & pat metheny]. e os gritos aparecem com lágrimas. eu e a música gememos sem tempo – a dor afinal também pode ter melodia – e o que ainda ontem era vida descansa agora dentro de quatro tábuas. à espera de um último beijo – um sermão. quatro lampejos de água benta. uma abonação a deus. beijo. um cortejo. a chave. com uma pá de terra tudo para sempre acaba – vivemos para sofrer e fazer sofrer – dentro do carro a noite e a dor têm agora melodia. aqui guardarei todo o meu luto – sinto-me em paz. entre recordações e música – as notas musicais voam como borboletas. é tudo tão suave. tão doce. tão algodão e os gritos meros sopros que mantêm as borboletas a dançar – esta música foi inventada para os corpos partirem serenos – todas as despedidas são menos dolorosas com música. a contra-baixo compõem-se borboletas – os instrumentos choram comigo. o corpo cambaleia desesperado. braços rompem aos murros o volante que já não me guia para lado nenhum. e grito. grito. grito. insulto deus. insulto o universo. os santos e os médicos. eu. insulto-me. também andava noutro mundo quando a doença destruía a tua vida pai. comeram-te o último olhar – queria tanto um adeus. um abraço e agora não resta nada. só o corpo de olhos fechados. nenhuma fotografia minha dentro – choro. dor. desespero. raiva e o corpo sem força para resistir à promessa de encontrar o dia certo para chorar – também já não temo a morte. não cumpri a palavra. não devia chorar no dia em que as dores acabaram para ti. para nós – as borboletas só aparecem na primavera e ainda faltam quatro dias – choro. os olhos a gritar. os gemidos abafam o bater do coração – estou esgotado – choro. esta música será minha para sempre. é nossa pai. é uma música feita para fazer nascer borboletas. de todas as cores. livres. a engolir vento para rodopiar de alegria por terem nascido belas. um dia também quero ser assim. livre. a dançar de alegria por ter nascido em ti – choro. a música. cada vez mais música. a dor. cada vez mais dor – as lágrimas continuam a cair pelas primaveras passadas. e choro os pássaros. as flores. o mar. a floresta. o cheiro. os abraços. os animais. as estrelas. as nuvens. as borboletas. o que continua a nascer nos olhos. choro a vida. choro porque vivi o suficiente para te ter para sempre dentro de mim. choro porque me ensinaste a ver borboletas. até nas noites de luto – esta é a minha rua. para sempre. a minha casa. e nesta rua. nesta casa haverá sempre uma família que chora. um dia choramos saudade. outro dia choramos recordações – choro. hoje choro eu. amanhã os meus filhos – devem ser os filhos a chorar os pais. basta aprenderem a encontrar borboletas – deus me ajude –

- epílogo (brevemente) -
 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 17/09/2011 23:00  Atualizado: 17/09/2011 23:00
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 Re: borboletas de agosto - 5 de 5
Que imensa solidão trás uma saudade. Esse dói em mim... bjs daqui