Poemas : 

ensaio para um dia de sol

 


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


olho
submeto-me ao dia de sol
a esplanada toma a cidade
óculos ray-ban
perna alçada
costas no chão
onde vivem todos as dores
pela frente
o sol e o “garçon”
reclamo atenção aos dois
pssssssssss
um café curto como o raio
de sol
o dia já vai longo
olho
os que não me olham
estamos todos ao mesmo
sol
finalmente o pedido
atiro-me ao café
preciso de um excitante
cafeína
com adoçante
tenho medo da diabetes
de seguida um raio de sol
este é meu
escolhi-o
pelo sorriso
pela luz
é vida
olho
nestes dias só sei olhar
estou fora do corpo
da roupa
da intelectualidade
dos óculos graduados
há quem pense por aqui
livros abertos
jornais enormes
revistas cor-de-rosa
todos menos eu
a diferença
mais uma vez marginalizo-me
não sei ler com o sol
raios queimam palavras
olho
não faço nada
sinto umas dores
vivem por detrás
às costas do que vejo
é a vida
olho
para a frente
vento ameno
olhos frágeis
ao tempo
à idade
à cidade
para onde caem os sonhos
há sol em qualquer canto
nos hospitais, nos asilos, nos olhares
há sol onde há medo e morte
é a vida
olho
cimento
negro
desbotado
irritado
o cão matou o marido por ciúme
crime passional
dizem os jornais diários
gente que cuida do que vê
correm carros
correm pessoas
correm cafés
só mendigos mantêm a qualidade de vida
olho
é a vida
olho
é verão
corre o “garçon”
corre o copo
com água pelas bordas
mais uma
e é o fim
da gota
mas é de equilíbrios o “garçon”
equilibra o copo
o sorriso
no ouvido
o francês com sotaque
da porta da casa:
“un café très rapide”
de seguida o lisboeta:
uma bica curta se faz favor
está com pressa
diz a boca
no olhar
no gesto
o suor
é a vida
e os olhos
dos clientes
extasiados
seguram o copo como se fosse o mundo
talvez seja
afinal somos feitos de água
e da água não há medos
só quando os sorrisos se afogam
no tempo
no próximo mês
depois das férias
perdem-se de todos os raios de sol
e há tantos pelas ruas
perdidos
no calor
abandonam-nos
partem para “vacances”
é a vida
olho
e os candeeiros estáticos
agarrados às placas de trânsito
sentidos obrigatórios
obrigações impostas
rotundas que não os deixam circular
e o polícia vestido de pistola
acena com a mão para dizer:
mais rápido
mas estamos de férias
o país está de férias
as matrículas amarelas estão de férias
temos que andar mais rápido
é a vida
olho
o sol cai
a água do copo não
cai a cidade
não cai o “garçon”
caem os óculos ray-ban
não caem os olhos leitores
cai o descanso
não cai a vida
ergo as costas
desdobro as pernas
levanto o corpo
olho a cidade
está morta
escura
vivos só eu e o garçon
tudo o resto fugiu
de escuro ou de medo
aproxima-se uma nuvem
talvez chova
e eu sem guarda-chuva
talvez fique aqui para amanhã
a cidade voltará com o sol
e o “garçon” também

 
Autor
sampaiorego
 
Texto
Data
Leituras
868
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
8 pontos
8
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Migueljaco
Publicado: 15/10/2011 18:30  Atualizado: 15/10/2011 18:30
Colaborador
Usuário desde: 23/06/2011
Localidade: Taubaté SP
Mensagens: 10200
 Re: ensaio para um dia de sol
Boa tarde Sampaio, seu personagem faz uma porção de analogias neste dia ensolarado, parabens pelo seu instigante poema, MJ.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/10/2011 19:17  Atualizado: 15/10/2011 19:17
 Re: ensaio para um dia de sol
...um raio entre nuvens de chuva é troco que o sol em silêncio dá.


Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 16/10/2011 02:36  Atualizado: 16/10/2011 02:36
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 17925
 Re: ensaio para um dia de sol
há sol em seus olhos, há sol no aqui e agora nesse momento também. bjs meu querido


Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 07/11/2011 22:44  Atualizado: 07/11/2011 22:44
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: ensaio para um dia de sol
há uma leitura contínua, que se faz para dentro e nos ofusca sóis sem dias... há o papel, onde, por vezes, esses sóis se fazem manhãs. ou tardes. ou dias inteiros de noites acordadas...

Beijo de sol.