Poemas : 

ensaio mudo da palavra [4 de 4]

 
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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


as palavras sem arestas nunca se fazem ouvir – só as palavras arremessadas da montanha. pela força de uns braços de um viriato rebelde. é que chegam à minha cabeça com força de se fazerem ruído – atiro-as com a força de uma raiva que não se pode escrever em palavras. só o ar regista a sua trajetória como cometa. à velocidade da luz – o espanto é então geral e a multidão. em pânico. olha agora para a palavra como se esta fosse capaz de matar. nunca lhes passou pela cabeça que esta boca aberta fizesse das palavras som – estupidez. escrevo palavra-bala. palavra-canhão. palavra-míssel. mas por muito que queira exterminar os ruídos que vivem em círculos não o sei fazer – tudo funciona ao contrário em mim. e as palavras que atirei pela minha montanha abaixo são agora palavras-bala a enterram-se no meu corpo. castigo do deus em que ainda acredito [não sei se alguém conhece o meu deus. é meu. criei-o só para mim – um pedaço de madeira. dois pés. duas mãos e quatro pregos – é só meu. só eu sei se faz milagres] – já são tantas as balas perdidas no meu corpo que um dia serei o homem-bala. ou quem sabe possa implodir de pólvora – só falta o rastilho – seria uma morte sem honra. uma milésima de segundo e depois do barulho já não existe nada. só o cheiro a pólvora queimada – nunca mais haveria o som-silêncio. o ruído triunfaria. que é como quem diz o mal triunfaria. nunca mais teríamos sentimento em papel. acabariam os livros. as sebentas. os rascunhos e até os aviõezinhos que na primária lançava com mensagens de amor para uma amiga que ainda não sabia ler. acabaria tudo. até esta minha liberdade envergonhada de vos dizer como guardo os sons. de uma cabeça que não consegue parar de imaginar palavras – estão todos confusos com tanto barulho. as festas sempre criam confusão nos homens que vivem ao som dos sinos que vão e vêm – eu é que não aguento mais estas palavras que andam em círculos arrastadas por corpos de gente que não ouve – eu só quero ser artesão. um homem de um só ofício. quero fazer palavras-peças que em silêncio falam – tenho que as tirar da cabeça. trabalhá-las. dar-lhes forma. cor. sentido. um céu que lhes caia em cima ou uma cama para dormirem um sono seguido. sossegado. com os primeiros raios de sol as vogais abrirão em sons nascidos para lá da faringe. no estômago. ou mais abaixo. nos pés. no dedo grande do pé. aquele que por ser o maior a gente imagina que é o mais importante – quero ser assim. grande como o dedo do meu pé. não fala mas também não precisa. é o maior – ninguém entende a vida dos artesãos silenciosos. as multidões não sabem que o silêncio os mantém vivos. mesmo que na sua cabeça sejamos ignorantes. pior. como não usamos boca. não há voz. não há palavras. e sem estas não há inteligência – multidão. já li algures que é nas multidões que nos sentimos mais sós. esse aglomerado de pessoas não sabe que o silêncio é uma forma de vida dolorosa. faz-nos amigos da morte. a morte é silêncio. solidão. ausência de som. de luz. de primavera. de mar. de gaivotas. de maçãs – tal como o sono de shakespeare. também o silêncio é a antecâmara da morte – para a multidão só o bater do martelo é parecido com o bater do coração – o silêncio é sinónimo de nada e tudo o que é nada não tem boca nem alma – tem de haver pregos. muitos. muito barulho. só na casa de deus é que se quer silêncio – pedintes. temos que arrastar a voz pelo meio dos santos a pedir absolvição para o pecado mortal dos que vivem sem voz – o que não entendem é obra do diabo. e só o fogo libertará do mal o homem. caído nas profundezas do inferno – fogueira. inquisição da sociedade – nunca perceberam o porquê de cristo estar seguro por pregos a uma cruz. e agora não percebem por que é que um artesão usa pregos para se manter preso à vida – hoje apetece-me morrer com um prego. não um prego qualquer. não. um prego feito de contrações. preposições. advérbios de lugar. interrogações e negativas na primeira pessoa: eu não sou. eu não escrevo. eu não vivo. eu não serei nunca coração a bater como prego – não morrerei como um prego qualquer. morrerei artesão nesta vida feita de silêncio – para quem ainda não sabe. quero dizer que tenho alma. bem sei que é uma alma de merda. que quer um dia morrer por dá-cá-aquela-palha. já lhe tenho dito que não pode ser. temos que morrer por dá cá este prego – não posso ser ingrato. afinal de contas foi este meu prego que. em silêncio. me trouxe até ao dia de hoje. trouxe-me até vós – talvez aquela chave que um dia encontrei numa rua deserta sirva para que aqueles que me leem possam decifrar o que as minhas palavras em ruína dizem
 
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sampaiorego
 
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