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ilusão

 
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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


as grandes metragens cinematográficas quase sempre terminam com o artista a resgatar a amada do tirano malfeitor – é o triunfo do bem sobre o mal – um abraço. um beijo nos lábios forte. e os corpos fundidos num só para sempre – a plateia em pé cauciona com palmas a felicidade eterna: muitos filhos e só a morte os separará – the end – o mundo da ilusão acabou – o momento é real. os corpos tomam a verticalidade. o conhecimento apruma-se. olha em frente e parte para o mundo inteligível – guardam-se apressadamente os lenços encharcados de sentimento. a condição representa a verdade da ocasião. mas as ideias querem-se enxutas – caminha-se – há de novo razão dentro dos corpos. a felicidade não é eterna e a realidade é sempre traçada a partir de microssegundos. alguns fatais – entrar no filme certo da vida requer habilidade. conhecimento. inteligência. e porque não uma pitada de sorte – sempre ouvi dizer que a sorte dá trabalho para caraças. a ventura não nasce para todos. não – é fundamental ter ao nosso lado os atores certos para um filme único. sem ensaios. sem cortes. sem homem ponto. sem holofotes. sem pancadas de molière. sem merda. nada do que é feito tem volta atrás – uma arte complicada. ajustável a uma única fórmula matemática de resultado quase sempre incerto e com uma variável aplicada à velocidade com que nos adaptamos ao imprevisto – o homem das cavernas evoluiu. adaptou-se. e agora o fogo é instantâneo: a fricção das pedras substituída pela lixa e o fósforo – atrito. faísca. e a explosão acontece. o calor-luz aparece para dar racionalidade aos corpos. nas paredes as sombras são agora a verdade projetada em dobro para o bem ou para o mal – é indiferente para este mundo aligeirado saber que a verdade permanece em todos os espermatozoides – ninguém quer saber quem é o dono do bem se é o mal que traz a esperança – o homem da vida real esqueceu que só a partilha justa produz harmonia – andamos todos enganados.

2.
não esqueças de te portar bem. não mintas. não faças asneiras. não contraries os teus pais. respeita os mais velhos. reza sempre ao deitar e vai à igreja receber o senhor para ficares protegido dos demónios e das más tentações
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– as recomendações para a felicidade plena continuam
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faz os deveres da escola para um dia seres um homem importante. para seres alguém na vida. não queiras ser como o teu pai. mata-se a trabalhar e nunca tem nada. põe os olhos miguelinho. agora que é doutor já não lhe faltam companhias – o futuro está nas tuas mãos. faz-te um senhor para não teres que andar a contar os tostões – receita para uma felicidade eterna tal e qual como no cinema: um artista doutor. fama. espectadores-clientes e a vida a sorrir – caminha-se – a esta gente ninguém lhes disse que a vida também pode ser um filme onde as nossas verdades se apagam com o acender das luzes – embuste. esperança armadilhada para os pais e para os filhos – pai uma vez. pai para sempre – mataram a fome com a livros cheios de saber comprados com trabalho de sol a sol. e nas mãos a aspereza do sofrer em alegria. nos olhos a vaidade de verem os filhos crescer com sapatos que nunca tiveram. na boca a felicidade feita de carne da minha carne
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“Só há felicidade se não exigirmos nada do amanhã e aceitarmos do hoje, com gratidão, o que nos trouxer. a hora mágica chega sempre." [hermann hesse]
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havia fé até nos nobéis da literatura – a hora mágica vai chegar – a idade vai passando com alegria nos corpos doridos de tudo. fé – talvez haja outro mundo melhor para quem sofre por amor – os filhos são sempre tão imensos para um mundo tão apertado – o tempo passa – finalmente vão poder descansar. sentarem-se numa sala de cinema. e em paz. saborearem com prazer um filme da sua juventude. uma daquelas velhas películas do western americano. onde mais uma vez o bem derrota o mal num duelo marcado para o pôr do sol – frente a frente. desta vez. o artista apesar de ferido vence a ganância. saca da pistola com balas feitas de sacrifício. num gesto rápido. o mais rápido de sempre em filmes de cowboys. crava uma bala-estaca de tudo que há de bem no corpo do capitalismo selvagem – o mundo dos que amam incondicionalmente ganhou mais uma vez no grande ecrã – finalmente justiça

3.
na parede uma luz delicada indica em forma de seta a saída: exit – a geometria perfeita do espaço perde a estética – plateia vazia. primeiro balcão vazio. segundo balcão vazio. frisas vazias. tela vazia e o que era gáudio é agora um aglomerado de cadeiras perdidas num vazio cheio de nada – de cadeira para cadeira difere apenas um número e uma letra de um abecedário que nunca servirá para dizer o que quer que seja – o impar e o par trespassados por uma passadeira vermelha. cor de sangue sujo. puída por um vir imaginário-esperança e um ir de nostalgia-desgraça – há agora um silêncio que não sei escrever. talvez um silêncio-espera. como se a gravidade terminasse e o barulho ficasse parado no ar. numa cena de amor. talvez num beijo do clark gable na marilyn monroe. ou então. quem sabe. o aparecimento inesperado do homem aranha pendurado nas teias da vida – tudo é uma teia. a vida é uma teia – isso é que era. um herói de carne e osso. a falar a mesma linguagem dos mortais. com as mesmas mágoas. com os mesmos malabarismos de equilíbrio. deixa cair das mãos fios de seda pura que não servem para nada – encantamento. ilusão. magia – há quanto tempo não temos um herói. viriato o mais antigo. d. joão II nos descobrimentos. camões por ter perdido um olho para um povo que já quase não existe. e o tempo a passar sem nada. só reis. e um dia uma república que nunca trouxe fraternidade. igualdade e liberdade. não trouxe nada. o herói da modernidade é o túmulo do soldado desconhecido. somos todos nós – há um silêncio-espera que parece não ter fim
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[nem sei bem se este silêncio-espera pode ser escrito – talvez esteja a ficar irracional – espero que me compreendam]

4.
novas aparições de humanos só na próxima sessão – tudo que é vida vai nos corredores – os corpos movem-se num caminhar pós-morte. buscam a luz para apagar dos olhos o testemunho da consciência afetiva – resistem os fracos. poucos e com escassas provas da sua humanidade: nariz fungoso. olhos inchados e a face tomada por feições amenas de mortalidade – todas estas provas num tribunal não serviriam de nada. qualquer juiz medíocre diria que se tratava apenas de uma constipação ou em último caso. uma alergia ao pó fabricado por multidões a correr apressadamente para a indiferença: exit – a consciência afetiva não sobrevive com a chegada dos corpos à rua – finalmente todos na vida real – só a morte é igual para todos
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como escreve lobo antunes: arte é longa. a vida breve – tal como a vida também o belo do cinema não é eterno

 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 10/05/2014 21:24  Atualizado: 10/05/2014 21:24
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 Re: ilusão
e a morte é um de nós!
esplendido! vou guardar
deixo um beijo em troca