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abyssus abyssum invocat

 
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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


o meu nome é sampaio – isto ainda não acabou mas sei obrigatoriamente que um dia vou sossegar – um alpendre virado a sul. uma cadeira de baloiço. um livro por escrever e a saudade a causar uma nostalgia-descanso – do outro lado dos olhos. além-terra. o mar: sereno. formoso. robusto. estático. sem nada a ir e a vir – só silêncio – na cadeira o corpo preso a um olhar demorado na fímbria do tempo andado – contemplação – nada volta – costas. ombros. braços. mãos. dedos. finalmente tudo pronto para um adormecer tranquilo. tudo em descanso. e tudo são agora recordações que enterro para sempre na preia-mar – as pernas estendidas seguram na extremidade pés deformados. cobertos por sapatos pretos-baço numa simetria perfeita – os atacadores cruzados em forma de cruz tombam numa laçada forte para sul. como se quisessem apontar com seguridade o caminho reservado a quem adormece em paz – em cada pé um caminho feito. em cada sapato um pé-de-meia escondido para o dia de todos os dias – três ou quatro fotos. a chave da morada onde o meu pai descansa. o anel de duas cores. o abraço guardado de cada um dos meus filhos e os lábios-aroma da mulher da minha vida – os pés de tempos em tempos cruzam-se. descansam um em cima do outro. revessam-se pela mesmice do descanso – sempre foi assim. nunca se deram parados e tantas vezes andavam sem sair do sítio. mas andavam – conhecem-se como ninguém. o caminho de um foi o de outro – do alpendre tudo se apresenta imóvel. o corpo. os olhos. o mar. as gaivotas. os sonhos. a contrição. as desilusões. a esperança e a promessa imutável de que um dia partiria feliz – mas as promessas também se quebram. cristal – só bóreas continua inalterável. sacode a ira com um último sopro gélido. trespassa-me a camisa no decrépito solar rompendo a pele num arrepio quebradiço. cristal-prenunciação – o silêncio é agora imperecível num horizonte que se esgota com a permissão dos olhos. mais pequenos a cada lembrança. quase escuros. inofensivos e a energia do ser augura finalmente aprovação para o fim – o que me sobra dos olhos já não aguenta as minhas gaivotas naquele voar descuidado. livre. espontâneo. destemido. guerreiro. agora voam a favor do vento norte sobrevoando o sobrolho em círculos que se tornam mais pequenos a cada volta – sempre amei a liberdade das gaivotas. talvez por nunca ter percebido se é feita só de vento – finalmente na face uma expressão eterna de um sorriso que num vi – por fim livre. fora do corpo – morte e vida severina
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*abyssus abyssum invocat - um abismo atrai o outro
* morte e vida severina – joão cabral de melo neto
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Autor
sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
Transversal
Publicado: 28/05/2014 16:23  Atualizado: 28/05/2014 16:23
Membro de honra
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Mensagens: 3755
 Re: abyssus abyssum invocat
és sem dúvida alguma (opinião minha) um dos mais interessantes e inovadores prosadores que por aqui passeia a sua arte "mas as promessas também se quebram ... face a uma expressão por fim livre. fora do corpo. os olhos. o mar"
e com uma leveza apesar da complexidade do abismo que atrai o outro (palavras de David pai do sábio Salomão)
"Só silêncio", sim só o silêncio quase absoluto "preso a um olhar" pode reter as tuas palavras, ou sabendo que um dia iremos todos sossegar. Divinal. Obrigado.


Agradeço-te


Enviado por Tópico
MarySSantos
Publicado: 28/05/2014 18:38  Atualizado: 28/05/2014 18:38
Usuário desde: 06/06/2012
Localidade: Macapá/Amapá - Brasil
Mensagens: 5734
 Re: abyssus abyssum invocat
um texto que me levou a investigar esse rumo que todos seguirão. quem dera pudesse eu ficar nesta bela preparação, minuciosamente descrita, mesmo que triste, levando as palavras a passear.

obrigada e

abraços.


Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 29/05/2014 04:08  Atualizado: 29/05/2014 04:08
Membro de honra
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Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 17875
 Re: abyssus abyssum invocat
as melhores paisagens, são as que dentro não se movem.
quando de fora, na altura do alpendre, caminha lá, onde os ventos
nascem, nos braços da memória. vergam o tempo, não esse. outro.
sinto triste esse par de pés, com a permissão do horizonte, esse
que margeia um sorriso, que confisca o resto.
talvez o mar... sei que vou roubar, por isso nem vou agradecer
e sim padecer da beleza de roubar...