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A Montanhesa - IV Parte

 
A Montanhesa
Parte IV

Dois anos se arrastaram penosos sobre os anteriores eventos carregando no seu rasto outros; uns promissores, outros desanimadores, mas que mudaram para sempre a situação politica e geográfica da região. Regressaram as gentes fugidas na esperança de se realojarem nas aldeias e lugarejos de origem e reaverem, assim, os haveres e o modus vivendi de outrora.

0 regresso, quase sempre forçado pelos detentores do poder na ânsia de escravizá-los aos seus domínios - quem, louco, governaria domínios despojados de súbditos? - renovava no espírito das gentes, sobretudo as mais idosas, a realidade jacente do desfilar de horrores e tormentos sofridos no passado, atingindo-as física e emocionalmente. A marcha inversa era cepticamente esperançosa de outros dias pacíficos e prósperos a acreditar-se nas promessas dos senhores sobreviventes.

Porém, chegadas, as gentes apenas engrossavam as fileiras dos deslocados; as terras e haveres há muito deixados ao abandono da salvação garantida tinham sido usurpados na voragem dos senhores, que, como recompensa, os tinham doado aos sectários mais ferrenhos e leais ou consentido a recolocação de outras gentes necessárias a sobrevivência dos feudos.

Assim, miseravelmente mantidos, ocupavam estes, também violentamente arrancados de outros domínios, os campos e casas de outros, pressupostamente ou não, mortos, desaparecidos ou ausentes, num desejo feroz de reterem as parcas benesses injustamente recebidas a que se aferravam cegos de posse. Tornavam-se os novos usufrutuários violentos e inimigos da vinda dos anteriores proprietários olhando-se de viés, desconfiança, desdém e maldição. Estas situações eram bem prazenteiras às ambições dos antigos carrascos que, numa ampla reviravolta de acção, acolhiam publicamente todas as gentes e propagandeavam a sua magnitude e caridade, mas nos sombrios camarins deste trágico-cómico teatro da vida urdiam mais alianças, tácticas, que espalhavam a discórdia entre as gentes descontentes forçando-as à desunião ou culpabilizando os senhores da paz dos males presentes e vindouros. Tentavam, assim, desviar a atenção

popular que sobre si pendia numa tentativa quase conseguida de lançar na bruma do esquecimento a sua barbárie.

Jactavam, estes tiranos, para a população desavinda e esfaimada as “palavras de ordem” de promissores futuros ensaiando acções de duvidosa pacificação e governo. Vangloriavam-se em festas e romarias, onde se distribuía alguma comida e muito álcool, perturbando a razão e a justiça. A pantomina dos tiranos alardeava como se dissessem:

- Vede corno sou um bom soberano!

- Vede como sou magnânimo e piedoso!

- Vede corno me preocupo com o meu povo e como cuido dele!

- Vede os desgraçados que acolhi, alimentei e protegi!

- Vede! Vede! (mil e uma artimanhas de igual tom)!...

Se questionados sobre a sua tirania, defendiam-se e escudavam-se com a necessidade da autodefesa; se confrontados com a sua vilania comprovada, acirravam os agradecidos sectários e ignorantes súbditos contra outras gentes mais ponderadas, contra os deslocados e contra os senhores da paz, invectivando-os de traidores, usurpadores e malquistos.

Proclamavam, rosnando:

- Vede os vossos inimigos! Eles tirar-vos-ão tudo o que vos doei e que é vosso. Eles vos expulsarão e despojarão das vossas vidas. Se não me protegerdes, não tereis uma mão forte para derrotar estes nefandos inimigos! Por isso, massacres, torturas, violações, eram infames acusações, eram métodos que desconheciam e nunca por si usados. Tudo era urna torpe invenção dos seus detractores.

Se acusados por provas inegáveis, afirmavam, traindo, que a culpa fora dos seus sectários que tinham desobedecido às suas ordens e / ou agido por risco e conta próprios.

Neste demorado vaivém de acusações e jogos de poder, arrastavam-se as resoluções pacificadoras dos “Senhores da Paz", entediando-as em teias viscosas do ignorar ou tardar do seu cumprimento fazendo-as naufragar em atóis de ignorância, do subterfúgio, do assassínio e da ameaça de quebra latente da paz, da ordem e do progresso.


Triste Poet@
(João Loureiro)

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