Crónicas : 

QUASE UMA LIÇÃO ESTÉTICA

 
Quando menino as minhas preocupações eram mais importantes. Veja bem, sem grandes ambições, bastavam-me umas tantas caixas de sapato. Nelas incrustava uma série de personagens inusitados, repletos das mais peculiares características, disso a chamarem de prosopopeia - coisa a chegar ao meu conhecimento tempos depois. Havia pedras, pedaços de madeiras, tampas de garrafas, antitranspirantes vazios e o que mais surgisse do descarte dos outros em casa. Se não existia nenhum valor nelas mesmas enquanto objetos, na minha imaginação formavam um pequeno tecido de personalidades tão extraordinários e singulares (singular o quanto se é possível na infância) que doía-me toda vez da necessidade de descarte.

Depois de harmonizado ao íntimo, quando algo ou alguma coisa torna-se parte de nós, o romper sempre deixa marcas profundas. Mesmo se a vida existir apenas numa espécie de dimensão metafísica - termo a escapar da minha cognição à época. Mas em minha mente estavam claros os traços de cada um deles, o seu andar, a sua postura e a ginga em campo. O espaço encontrava-se já delimitado com precisão milimétrica, aristotélica; cuja demarcação da imaginação, afirma, depende diretamente da memória. E eu vivia inteiro para o futebol.

Com o tempo dei a preocupar-me com outras questões - sérias quanto fossem -, porém sem deter em nada aquele intenso brilho de outrora. Questiono-me dia e noite sobre a escrita: o que é escrever? - Mais: o que é escrever bem? E não consigo chegar a uma conclusão clara, límpida feito os gols, as narrações; os flashes imagéticos tão vívidos ante os meus olhos. Tenho ciência, hoje, as cenas carecem estar desanuviadas na visão interna, beirando o concreto, para depois serem transmitidas as palavras.

Crescido soube de alguém ter escrito "As coisas que não levam a nada têm grande importância" e não pude deixar de sentir-me contemplado no lirismo de certa forma. De repente, muito cedo eu sabia nuances da natureza humana, das quais o tempo - sempre o tempo - tratou de turvar. E agora cabe-me o trabalho de escavar superfícies até rememorá-las.

 
Autor
luscaluiz
Autor
 
Texto
Data
Leituras
243
Favoritos
5
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
61 pontos
9
6
5
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
rosafogo
Publicado: 23/05/2023 13:45  Atualizado: 23/05/2023 17:56
Usuário desde: 28/07/2009
Localidade:
Mensagens: 10439
 Re: QUASE UMA LIÇÃO ESTÉTICA
Faço parte dessas crianças que não souberam o que era um brinquedo comprado, tal qual meus amigos de infância, os brinquedos vinham de pertences que não serviam para nada, como loiça partida caixas de pomada de sapato, sei lá, trapos para fazer bonecas, flores da natureza, mas, nem por isso deixei de ser uma criança feliz, também já se desenhava e eu me apercebia que gostaria de arte, pintar, escrever e hoje sinto que não fui mais além, porque criança pobre não tinha direito, senão a sonhar.

Adorei sua lição de estética
saudações.


Enviado por Tópico
Jmattos
Publicado: 23/05/2023 14:25  Atualizado: 23/05/2023 14:30
Usuário desde: 03/09/2012
Localidade:
Mensagens: 18124
 Re: QUASE UMA LIÇÃO ESTÉTICA
Poeta
Não tive muito colo, mas minha mãe sempre me deu as bonecas e os brinquedos dos meus sonhos. Talvez fosse a forma dela demonstrar amor materno. Se sou apegada a alguns desses brinquedos? Sim, minha filha herdou muitos deles. Graças a Deus, minha filha é mais desapegada que eu. Bela crônica! Escrever é um dom! Escrever bem é um dom sendo trabalhado! Obrigada pela partilha e por me levar a conhecer Manoel de Barros!
Parabéns!
Abraço!
Janna




Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/05/2023 15:07  Atualizado: 23/05/2023 15:11
 Re: QUASE UMA LIÇÃO ESTÉTICA
-
-

"Aprender até partir o cinzel e a mascota".

Foi um gosto de ler

Cumprimentos