estado totémico
nunca sei de onde me chega esta coragem de vos dizer como sou – louquice – retalho-me pelo que sinto – se soubesse não era louco. não me retalhava. não me temia – louco pode ser um qualquer. ou não – por uma coisa pessoal. ou não – com coisa do demónio. ou não – ou simplesmente um raio de uma porta emperrada. ou não – ou então. talvez o mais certo. é esta loucura acontecer numa luta contra o destino – uma questão de sobrevivência. coisa da alma – mas o cérebro sabe que a morte é inevitável – é necessário ser louco quanto antes – a morte só é silêncio para quem parte – quando partimos levamos tudo – este tudo para mim que gosto de me dar são as palavras que ficam por dizer – a morte só não cala a escrita
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[resposta ao colega transversal no meu texto ressacado]
estes lados. nossos
hoje tenho entre os dedos um pedaço de terra. trouxe-a de um jazigo para amaciar uma saudade – depois da tua partida senti-me sempre tão perdido. tinha ainda coisas encaixotadas do passado para te dizer. eram importantes. digo eu – não devias ter apanhado esse autocarro. bem sabes que o caminho por aí é demorado. estreito. essa estrada é sempre tão isolada. tão triste. tão sem vida. tão escura. – tenho medo que estejas sozinho e com frio. podias ter levado aquele sobretudo de lã às cores. fazia-te bem mais novo. era lã pura. combinava contigo – um dia vesti-o. irritei-me. não me assentava nos ombros. sempre foste mais aprumado. tinhas as costas sempre tão direitas – as minhas. bem. as minhas sempre foram apenas mais umas costas – tenho dias em que adormeço a acreditar que é possível viver nos sonhos – ontem consegui falar-te com os lábios. sempre depois daquele beijo obrigatório na face. quente. senti eu – deixaste-me ficar um trago açucarado na boca. mel – calei-me. guardei-o no silêncio criado pelos meus olhos. nosso – apeteceu-me estender as mãos. tocar-te – tive medo de acordar. guardei a mão na algibeira. é nesta que tenho cravada a linha da vida que um dia foi cortada pela tua ausência – nesta linha que continua a crescer aos ésses . criei uma árvore em terra fértil quando ainda não via todas as folhas. algumas viviam no topo das árvores. sem luz – era pequeno demais e tu viravas-me sempre para nascente – nos dias em que me pegavas ao colo. as árvores eram enormes – a vida ainda acontecia nos teus braços. fortes. tão fortes que sempre sorria quando me erguias em direcção ao céu – ainda nem imaginava que havia um céu capaz de receber todos aqueles que gostamos – apenas sabia de um jardim infantil criado para mim – havia sempre tanta gente a dizer coisas neste jardim. faziam um quase barulho. talvez um quase música – tu. falavas como se as palavras ainda não tivessem sido inventadas – nunca paravas – e nos teus olhos. nos teus olhos a alma das pessoas – neste mundo. havia um baloiço que nunca parava de ir e vir. como tu. partias para o teu mundo que mais tarde haveria de ser também meu – regressavas sempre. por mais que o tempo matasse o próprio tempo. sempre com um sorriso. sempre o soube – parecia tudo tão simples. bem sei que tu também eras simples – este baloiço andava para lá e para cá devagar. havia ali algo que eu ainda não percebia. sabia apenas que voava sempre de norte para sul – tu bem que me apontavas o caminho. mas era demasiado pequeno para entender que até o sol um dia pode morrer – mas não desistias. os teus gestos eram sempre palavras novas na certeza de ver um homem feliz – na tua presença o baloiço nunca parava: livre. procurava sempre novas palavras. novos ouvidos. novos olhares. novos gestos. esquecias sempre o teu caminho. cortavas o futuro. alagavas todos os longes. ficava apenas um ali. um acolá – as argolas de ferro que te seguravam à vida já rangiam – nesses dias. ouvia-se o vento. mal eu sabia que este ir e vir era já a vida a esgotar-se – cansado. respiravas ainda amparado no sinal da cruz com que te deitavas – tu ainda tinhas um deus. ele também era meu. estamos amuados – para te ser franco dele nada sei – no ar as folhas chamavam o outono – depois. apareceu aquele autocarro. as argolas partiram-se e as cordas começaram a chorar – nesse dia que viajaste fiquei tão só – tínhamos ainda tanta coisa para dizer – mais tarde um homem de chapéu preto chamou-me pelo teu nome. aquele que eu nunca uso por ser só teu. deu-me uma chave com um fita preta sem nenhuma palavra tua – tu não eras homem para partir sem palavras. não eras – tu sempre me dizias: porta-te bem enquanto estou fora. não aborreças a tua mãe – alguém te enganou. digo eu – fomos enganados – tiraram-te a memória para poderes partir sem boca – a dor comeu o silêncio – sei que um dia vais voltar. ou então esperarás por mim. tens de me explicar onde deixaste aquele santinho que usavas na carteira. nunca mais o vi. acredito que volte contigo – sei que um dia me vais pedir para falar da vida que guarda todos os dias – enterro tudo num buraco. onde criei a árvore – a pá é a tua voz.
teresa teixeira – sterea
“Às vezes, amigo, caem-me palavras líquidas dos olhos de te ler...”
sterea – 02.06.2011
comentário feito no meu texto “nunca acaba amiga”
como dizer-te que as tuas palavras sufocam – o ar desaparece. um nó feito de comoção aperta. e eu sem saber deslaçar esta aflição – na cabeça nascem atalhos que me levam para perto do que me dizes – há palavras que são eternas. e o corpo certifica para sempre o que é ser feliz – a cadeira ainda é a mesma desde aquele dia em que te li pela primeira vez. só o couro perdeu a cor. gastou-se na procura de um lugar seguro onde guardar as palavras que me deixas – escrever é bom – saber que me lês é especial – sempre que me escreves deixas-me cansado – fico sem saber o que fazer ao coração – deito as mãos ao peito e sei que ele bate das tuas palavras. sempre certo. ritmado pelos afectos de quem gosta de ler o que as palavras escondem – e o pensamento sem nada dizer. perdido nas entre linhas da vida que deixas tombar sobre o papel. feito de bondade – as estrelas brilham mesmo quando não há noite – o tempo é a tua alma. fez-te palavra – resta a memória – o que seria dos homens sem memória. sem nomes. sem lugares. sem abraços. sem bondade. há rostos que não se podem esquecer. momentos – momentos escritos são para sempre – memória – e leio e releio e o corpo ali. aqui. acolá. os olhos parados em sorrisos. eternos – não há força que desocupe o tempo quando dizes que as palavras são feitas para abraçar. e eu a agigantar-me ao mundo. a acreditar que o passado nos teus olhos é esperança. até a dor termina quando sorri pela vontade de te dizer: obrigado. obrigado por me fazeres feliz. obrigado por me ajudares a escrever. obrigado por me ajudares a ver o caminho. certo pelas palavras com que me abraças – memória – o que seria dos homens sem memória – há um outro tempo na tua escrita desigual. mulher-abraço. mulher-doce. mulher-dor. mulher-esperança. mulher-futuro. e uma mulher-mulher capaz de escolher a bondade. estender as mãos à vida. à amizade – e eu deste lado a ouvir o que escreves – ouço palavras como se fossem ditas ao ouvido. e o nó aperta. sufoca. e o ar foge. e a dor de estar feliz aqui dentro a dizer-te: doce memória. bendita memória – e abro mais um texto. e lá vens tu devagar. em silêncio é primavera. pelas rosas brancas – as amendoeiras sempre dão flor. todo o ano. o fruto pendurado em palavras que não acabam – e lembro vinhas do douro a correr rio. é outono. à lareira chama-se o inverno. largam-se as palavras. frias. à sombra do que arde. é quando a tristeza volta às noites longas. aqui o tempo parou. para sempre – e eu estou no meio de palavras-bondade. palavras-mel. palavras-saber – memória – quando escreves há em ti palavras que me apertam e só a dor. em sorrisos. me faz lembrar que sou mortal – quanta bondade. quanta ternura. quanta beleza há nesses olhos que sabem ler estas minhas palavras tortas. loucas. perdidas no tempo que imaginava só meu. pela incompreensão de nem eu as entender – e eu ali a contar pedras no chão. juntava-as com o arrastar das pernas de um lado para o outro. uma a uma. até fazer um muro que nunca mais me deixou ver para outro lado. um muro de vergonha. um muro apenas atravessado pelo som que anunciava a partida dos sorrisos. em bocas que nunca souberam dar um beijo – um beijo teresa. um beijo na face que já não tinha lado – não há lados para aqueles usam palavras para acarinhar. para dizer gosto – gosto porque gosto. porque é quente. é verão. porque é frio. é inverno. e no teu tempo inventas outro tempo. o tempo do que é desigual pela força de um outro tempo. feito à força de nunca veres o erro nos outros – sou erro. mas depois de te ler. volto a ser apenas eu. desigual sim. mas eu. assim como sou em cada palavra que escrevo feita memória – tu nasceste com essa grandeza de saber ler as palavras com abraços. e depois. escreves essas coisas que me fazem ver novamente o tempo como se hoje fosse o primeiro segundo de um dia que nunca tive. um tempo novo onde o erro ainda não tinha nascido – memória – e os muros voltam a cair. as pernas voltam a fazer cair as pedras para lá das nuvens onde vivem os arrependimentos que nunca consegui escrever. linhas em branco. imagino eu – não podes. nunca mais. fazer destas coisas teresa. estou sem ar e as palavras respiram com dificuldade e não tenho forma de te dizer obrigado. sem ter de que parar a meio para voltar a ganhar fôlego – estou cansado. estou cansado mas feliz. por ainda conseguir dizer-te obrigado. obrigado por manteres a memória como um abraço feito de palavras que não sei esquecer – obrigado teresa. até sempre –
imelda marcos
certo dia. na feira da literatura do luso poemas. um poeta ambulante desta “escola”. elitista [penso]. postou no seu espaço de opinião umas linhas de sua autoria sobre um qualquer assunto que já não recordo – lembro-me que gostei – despertada a minha modesta atenção. peguei no teclado. toquei as teclas com muito jeitinho e comentei como entendi – não sei se bem ou mal. comentei com a arte que ao longo do tempo fui capaz de amealhar – não foi muita. confesso com vergonha – já fiz muitas coisas na vida. não nestas coisas da literatura. destas. infelizmente. nada sei. mas de outras que sendo menos eruditas. ensinaram-me a compreender vagarosamente o que os hábeis escritores vão escrevendo numa arte que invejo – confesso que a minha destreza para a escrita é muito modesta. mas na oralidade o desastre é multiplicado por dez – um mal nunca vem só – daí a importância da “escrituração” para os mancebos como eu – escrever é comunicar – nesta habilidade feita a punho é sempre possível voltar atrás. reescrever o que pensamos estar menos bem. repensar. voltar a reescrever – fico sempre com a sensação de que quando reescrevo a emenda é pior que o soneto – aprendi a suportar com tristeza esta marca – burro velho não aprende línguas –
[prosseguindo. penso ainda]
comentar um autor. que através da escrita. teve a mestria de conquistar a minha [leitor] atenção. deve ser gratificante – que inveja tenho desta gente que é lida – eu bem tento. mas nada. ninguém me comenta – só deus [se houvesse] e eu é que sabemos a dor que me consome o corpo – as palavras são sempre tão difíceis de juntar –
[andando]
confesso que para mim comentar é na maior parte das vezes um impulso impregnado de gratidão. com resultados quase sempre inesperados pela perturbação emocional com que me entrego ao teclado. quero dizer: desfecho de escrita duvidosa –
[raios partam a minha sorte]
é amargo para quem não tem o dom da escrita – dentro da cabeça milhentas coisas lutam desesperadamente por um lugar no papel. as ideias penetradas por um sentimento maravilhado pulam de lado para lado. empurram-se. esmagam-se e arrumam-se como podem no espaço branco de uma folha a4 sem expressarem uma milésima parte do que deveriam dizer – tanto deslumbramento e o corpo sem forma de o mostrar – e a desarrumação aos gritos no branco da folha – desordem emocional é tudo o que ganhei por um dia ter aprendido a ler –
[que inveja da cegueira dos analfabetos. nenhuma letra os atrapalha]
mas nem sempre somos o que queremos. na maior parte das vezes somos o acaso de um caso na vida – um dia o meu pai e a minha mãe resolveram dar um beijo no período fértil. aconteci – cresci a imaginar coisas e de cravo na mão parti no meio de uma manifestação a cantar zeca afonso – quando olhei para mim era homem –
[menos homem do que sou hoje. era um garoto de maior idade]
assim foi. e o tempo a fazer-me crescer e a consumir vontades – os dias eram pequeníssimos para tudo o que sonhava fazer – as coisas do saber exigiam-me tempo que não podia dar e tudo foi ficando adiado em nome de ideais que hoje já não existem –
[também o meu muro caiu. eu e berlim unidos pelo mesmo destino]
os dias tornam-se compridos e impertinentes – envelheço a sonhar com uma casa virada para o mar. um sofá. uma lareira e uma mesa carregada de saber: livros e livros de gente que não sabe que existo. eu ali estou – sozinho para eles. acompanhado de amigos para mim – todos tão diferentes e todos como eu. unidos pela força das palavras – eu e eles virados para a lareira. eu e eles a ouvir o ir e o vir do meu mar e todos felizes com tão pouco – no resto do mundo as minhas gaivotas rasgam o vento numa liberdade que nunca alcancei – se eu pudesse acontecer de novo – na cabeça a morte trágica de romeu e julieta alimenta-me a esperança de eu também partir envenenado por uma última leitura do amor da minha vida: júlio dinis – havia tanto nos livros deste homem: saber. honra. verdade. tradição. família. trabalho. esperança. amor. caridade. humildade. humanidade. havia sonhos – sempre sonhei com um mundo bom –
[adiante]
uns dias mais tarde recebi em jeito de resposta ao meu comentário um pequeníssimo amontoado de palavras. que reconheço. talvez por minha culpa. nunca fui capaz de as compreender – lembro-me de ficar irritadíssimo – resisti – ao longo de muitos dias não fui capaz de encontrar no meu conhecimento o mérito suficiente para compreender o meu ilustríssimo escrevente – fiquei arrasado. mas logo percebi que o autor escreveu tudo num superlativo absoluto sintético – não tenho estudos para superlativos – envergonhado. remeti o meu corpo ao silêncio –
[desonra pensei. e como manda a tradição do país ao melhor soldado japonês. suicidei-me no meu silêncio]
não se vive em desonra – como foi possível não ter sido capaz de interpretar um simples amontoado de palavras – sei que estavam cobertas por uma ambiguidade sarcástica – como foi possível isto acontecer – tudo isto sufocava. tudo isto era como o enrolar da jiboia. apertava cada vez mais e a asfixia total era uma questão de tempo – o que o nobre colega retratou naquele breve comentário pode ser descrito como uma pintura abstrata lírica. de cores pouco definidas. traço largo. firme e suficiente forte para abraçar toda a ingenuidade do leitor ao ponto de o deixar confuso [louco] –
[havia naquelas palavras um cheiro forte a tons pastel-terra. lembrando o outono. o cair da folha. as primeiras geadas e a morte dos mais débeis à crueldade da natureza]
lembro-me de ficar com um misto de intriga e fascínio pela imagem do avatar do colega – era arrasadora: os olhos inclinavam-se para dentro. protegidos por uns óculos de massa que mais pareciam uma prisão. a boca como se nunca tivesse falado. perfeita – a barba [percebia-se] cortada à tesoura. a tombar para a esquerda como se impõe a um verdadeiro revolucionário com estudos – toda a imagem era profundamente perturbante. uma mistura deliciosa de madre teresa de calcutá com a heroicidade de che guevara – lembro-me de pensar: a história jamais apagará um retrato como este – nunca lhe perdi a admiração. ainda hoje. em segredo. pé ante pé para não incomodar. lá vou eu dar um escapadelazinha ao seu covil de saber – fico sempre estarrecido com a humildade de quem sabe que sabe –
[sou um romântico]
fiquei tempos sem fim a olhar para as palavras. ora lia o meu comentário. ora lia a resposta ao meu comentário – hoje posso garantir com verdade que não foi nada fácil aguentar aquela dor de saber que nada sabemos – é como nas corridas de fundo no atletismo. a meio da prova. surge uma dor na zona abdominal. chamam-lhe dor de burro. confesso que não sei o porquê – na dor de burro. sabemos que dói. colocamos a mão sobre o local da dor para comprimi-la mas não há nada a fazer. só pára mesmo de doer quando paramos de correr. neste caso de ler – assim fiz. e logo a dor parou – hoje à distância do tempo já gasto. lembro-me do local da dor e de um pequeno excerto do comentário que originou uma das piores dores de burro que tive na vida – dizia o meu caro colega que as minhas palavras lhe traziam à memória imelda marcos pela adoração que esta tinha por sapatos – este comentário mudou a minha vida – hoje sou um comprador compulsivo de sapatos. fanático e sem tratamento – tudo faço para embelezar os pés – aprendi que é absolutamente necessário estar bem calçado para que a escrita se torne credível. formosa e principalmente lida – nunca escrevo descalço. não. nunca mais quero ter aquela dor de burro –
[escrevi. li. pensei. escrevi e passaram-se provavelmente dois anos]
e agora vou dormir em paz
sampaio rego – 22 de julho de 2013
borboletas de agosto - 1 de 5
1.
5 de agosto o teu dia. todos têm um dia para nascer. apenas um. tu nasceste quando minguam os dias. ao contrário. em mim. os dias nunca param de crescer. nasci numa primavera tua – o calor de agosto é único. sufoca no pico do sol. mas com o cair da noite desdobro o primeiro casaquinho de lã. agasalho a primeira pele. encolho a face. guardo metade dos sorrisos. arrumo o corpo a favor do vento e caminho devagar de encontro ao tempo orvalhado – a melancolia dos dias pequenos está por aí a chegar – quando o agosto acaba. o setembro surge sempre a correr. a primeira humidade toca nos ossos. a solidão começa a ganhar lugar às pessoas. e as palavras quentes acabam por desaparecer – os dias escurecem mais cedo. e o corpo recupera a memória. esta necessita de sombra. de silêncio. de solidão. de cadeira. de borralho. de encostar o corpo aos olhos e rever tudo de novo. recuperar num outro tempo recordações perdidas – nada pode ficar para trás. nada pode ficar esquecido para sempre – um dia. sem que o corpo reconheça emoção. e a chuva se fizer ouvir nas telhas de vidro. levo o corpo à janela. descubro mais um natal. sei-o porque as casas estão enfeitadas com lâmpadas às cores. desejam boas-festas a um ritmo cadenciado com o apagar e acender das luzes – também tenho uma memória assim. acende-se e apaga-se ao ritmo da saudade. só não tem luz às cores. tem abraços apertados que ficaram perdidos em fotos a preto e branco – envelheço por cada natal . envelheço por cada agosto. envelheço pregado a um passado de palavras por dizer – o meu passado sempre foi agosto e natal. agora. agora é mutilação. é falta. é palavra cortada a meio. é história interminável – só a morte voltará a alinhar os corpos lado a lado. o nosso lado –
ressacado
quase louco
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estou muitas vezes assim – o hoje amarrado a um dente do siso que sempre conheci a abanar – [agora] raivoso coloquei-lhe uma guita em volta. a outra extremidade amarrada a uma porta que aparta o presente do futuro – um dia. um dia atiro a porta contra o destino
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ou
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fecho-a de vez
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correspondência violada - 01
e agora.
como resolvo estar vivo se é na morte das palavras que nós encontramos as mãos com que escrevemos
como faço para estar vivo se é com a tristeza da perda que as minhas gaivotas voam
diz-me
diz-me
se morrer é esta coisa de dizer coisas sem sentido
se morrer é abraçar as tuas palavras como se fossem tiradas de dentro de mim
se morrer é gritar pelas cores que enxergo no que escreves
e eu cada vez mais negro
-
encosto-me
encosto-me numa marquesa que já foi rainha
e escrevo
nunca fui nada
penso.
quero pensar nesta garganta que já não faz barulho
e o vazio é enorme
vai daqui até dentro do meu dedo indicador
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onde está a aguardente
quero queimar a voz
as palavras tem que nascer roucas
como o coração
rouco de gritar por socorro
e eu só
morto sem saber
só tu aí me ouves
-
correio privado com a minha querida amiga vânia - abril de 2012
nunca acaba amiga
nunca acaba. as mãos nunca acabam. elas escrevem como sempre. com o mesmo cheiro a mar. com a mesma gaivota a voar em círculos. bem sei que os círculos estão cada vez mais fechados. mas não fiques triste. só assim estão porque aprenderam a amainar os ventos. mesmo aqueles em que o vento se faz a norte dos olhos. lá para os lados do desalento. do fim do mundo – nesses dias amiga. nesses dias os olhos procuram sempre o fim do mundo. muitas vezes perdidos. desnorteados. confundidos. amedrontados pelo que ouvem aqui e acolá – mas sabes amiga. eu sei que sabes. sei tanto de ti que posso dizê-lo com toda a certeza: tu sabes que o fim do mundo fica para lá do horizonte. o que vejo todos os dias ao entardecer. quando o sol cai e a escuridão rompe pelas palavras como um farol pelo mar dos que escrevem com a noite. este farol minha amiga cuida de mim. não. cuida de todos aqueles que se atrevem a escrever com o corpo encrespado. como tu amiga. como eu que sou teu amigo – procuramos tudo dentro do corpo. até as palavras – muitas vezes sem o corpo compreender a carne cansa. desiste do belo. enruga. começa a cair aos pedaços como se de lepra se tratasse – sabes amiga. descobri que as letras também caem. caem porque é outono no corpo. e no outono as folhas cobrem sempre o chão em silêncio. o sol mais pequeno amarra-se às árvores com a luz que sobrou dos dias que já foram grandes. segura pequenas primaveras – também nós seguramos primaveras. e ficamos ainda mais belos quando não temos palavras um para outro. belos porque sabemos existir em silêncio – mas minha amiga. as letras não enganam o sol. o vento frio anuncia as primeiras geadas nas mãos onde ainda cabe tudo. mãos que apertam as janelas contra o peito que nunca acaba de encher – mas a vontade ainda é silêncio. a vontade ainda é outono. ainda há folhas por cair. ainda há outono no ar. outono dentro da janela – lá fora. do outro lado da janela que me segura. as árvores vivem agora despidas – no chão as folhas. nos ramos demoram-se os últimos sorrisos. como é possível sorrir amiga quando o corpo está nu. e o vento é um mundo desconhecido – ainda ontem era verde. ainda ontem o mundo era verde. verde esperança. ainda o tenho á frente dos olhos. dentro das mãos. dentro da janela. dentro do hoje que quero falar contigo em silêncio verde. com palavras fortes. verdes. capazes de resistir ao vento que teima em correr entre os dedos verdes também – hoje amiga. hoje minha querida amiga. que o dia está com um sol que só apanha metade da janela onde estou todo. e tu. a todo momento podes aparecer em silêncio. e em silêncio dizes-me. dizes-me silêncio. porque as folhas continuam a cair em silêncio. o mundo não acaba com os silêncios enquanto houver árvores. e há tantas árvores despidas como eu. como tu. despidas pelo outono. despidas porque gostam de meter as mãos por dentro de si para aquecer os gestos que querem deixar partir com as folhas de outono. folhas das árvores abertas ao tempo. e são tantas. sabes amiga são tantas. conto uma. duas. três. quatro. cinco e mais e mais e mais. cada vez mais mundo. e o tempo a passar entre elas em forma de vento – hoje minha amiga. é outono. é outono porque me despi para ti com palavras feitas de folhas. é um outono bonito. mesmo estando eu deste lado da janela e as folhas do outro lado. mas estou feliz. estou tão feliz que estou a fazer de conta que sou o vento. amarro nas folhas que fazem o outono e sopro para ti. sopro para o teu fim do mundo. sopro com o peito cheio de palavras que ficaram por dizer. mas se vires folhas no ar. belas. harmoniosas. livres. sorridentes. não tenhas medo. é o meu outono a fazer primavera na tua vida.
balancete
sou – tu. escrita. és agora o meu alimento – bem sei que as palavras estão sem sal. sem vinagre. sem cozedura. sem a força do deus fogo. bem sei – trago dentro de mim umas quantas frases feitas e não sei para que servem. recordações – amargurado. escrevo – a mágoa alonga sempre o que escrevo – as palavras multiplicam-se na proporcionalidade da mágoa – o que não era relevante é agora tudo o que me resta de um tempo fértil – e eu em banho-maria. a levantar fervura de recordações que nem sabia existirem – um homem com recordações pode morrer a qualquer momento – tempo-sábio. aprendemos tanto com a soma dos dias – trezentos e sessenta e cinco dias vezes cinquenta e dois isto é igual… não interessa. sei que é muito tempo – depois. chega a prova dos nove e quase tudo é resto zero – nas contas do tempo sobram unicamente as recordações. centésimas que fazem a diferença no acerto das contas – agora sou feito de tempo e recordações – escrever é um ato solitário – quando escrevo encontro o silêncio de todas as almas do mundo. cobrem-me com uma proteção sagrada. e a mão escreve num silêncio divino. em estado puro. sem pecado. sem remorsos. sem relógio. sem idade. sem nenhum dedo a julgar. e a balança parada num equilíbrio justo: de um lado o homem errante. do outro. em jeito de contrapeso. o perdão sobre a minha palavra de honra – sou feito de tempo – o silêncio para quem escreve é a prova de que a vida existe – no interior as palavras libertam-se finalmente das correntes. e o passado volta a ser hoje – com a escrita consigo ser hoje o que fui no passado e então. como criança. sou novamente feliz – ser feliz. alguém consegue ser feliz enquanto pensa?
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– só escrevo com a mão direita e a direito
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estou só. como gosto. e não tenho para quem ler esta folha. que ainda agora era branca. bastou um leve mover de mão. exagerado. para sarrabiscar tudo o que carrego numa saudade-medo – tenho medo de me esquecer – um dia esqueço-me – sinto que as palavras são a única forma de não deixar esquecer este sou – podia trazer outro sou para a escrita. mas não. trago este – não escolhemos o sou nem o seu fruto. somos o que somos e não há forma de fugir às palavras que me crescem nas mãos deste sou – da mesma forma que as macieiras dão maçãs e não dão cerejas – sou este sou e nunca conseguirei ser outro – cada árvore dá o que tem na raiz. e a minha raiz é esta. assim. com o corpo caído para norte e a mão a teimar escrever para sul – escrevo torto por linhas direitas – escrevo para dizer que existo. se não tivesse estas palavras como testemunhas. neste papel que já foi árvore. ninguém saberia da minha existência. talvez nem eu – neste tempo grisalho. os sonhos são cada vez mais pequenos – quando escrevo faço-me existir. lerem-me é saber que existo de verdade – escrevo logo existo
para uma amiga com aftas na língua
com que então a menina anda metida nas aftas. a vida da treta é dolorosa para quem como nós gosta de dar à língua a qualquer custo – escutamos então o mundo em silêncio – mas não te apoquentes. isso passa rápido e logo ficas novamente tagarela – quando era pequeno dizia que tinha “africas” na boca. talvez venha daí o meu primeiro abeiramento ao continente africano – adoro áfrica e o seu povo. o “selvagem”. o “virgem”. o “puro”. o das savanas. das florestas. dos rios com pirogas cortados a lanças plagiando anzóis – gosto das suas mulheres de seios nus. sentadas num almofariz de pedra gigante. catam cabeças da criançada parada num tempo sem números – nesta terra o dia acaba coma as árvores a engolir o céu como se fossem feijoeiros mágicos devorando um sol que nunca viu o mar. e os peixes vestem-se de rugidos ferozes. aterrorizando o escuro. e o silêncio quebrado pela fogueira a dançar rezas de um feiticeiro amamentado pelo leite de hiena – hoje. quero acreditar num deus que fez o mundo em setes dias. só hoje – estou a falar de homens bons. sem pecado. estou a falar de áfrica. do cheiro à terra queimada. da noite às cinco da tarde. do calor a deslizar pelo corpo em gotas pegajosa onde os mosquitos se amarram como se fossem aquelas fitas do antigamente que se penduravam nas portas das casas. dos leões. das gazelas. rinocerontes e toda a bicharada amiga do tarzan e da jane – gosto de áfrica. dos homens que usam uma tanga para tapar o que ninguém quer ver. gosto das velhas com as mamas a cair no umbigo e a rirem da cara de parvo do caixeiro viajante que lhes quer vender um soutien – lá estou eu a divagar. queria apenas dizer-vos que uma amiga tinha “africas” na língua – mas afinal o que são umas quantas “áfricas” na ponta da língua. nada. uma mesquinhez. umas minúsculas borbulhas excitadas com algum condimento mais apurado. afrodisíaco na construção excessiva de ditongos orais numa necessidade quase orgásmica para poder atingir o prazer supremo da comunicação – não basta falar com os olhos. não. não basta. e mesmo que as mãos pulem dos bolsos e se amarrem em abraços aos corpos que nos pedem socorro por um beijo que lhe diga: gostamo-nos – nenhum beijo substitui a palavra atirada de uma língua mesmo com aftas – sou louco. dizem – grave mesmo é se nos aparece um leão entre os dentes a correr atrás de uma gazela. e uns quantos canibais de ossos enrolados no cabelo. em gritos de fome a dizer: os restos da carne do almoço nos dentes é nossa – lá estou eu novamente a vaguear. a fantasiar tipo peter pan – por falar nisso. hoje comi peixe ao almoço será possível ter um canibal sentado no dente do siso de cana de pesca a lançar o anzol para a boca do estômago á procura de uma qualquer lombriga pré-histórica – não sei. talvez o remédio para estes meus devaneios cerebrais seja mesmo entregar-me a uma casa de saúde mental para finalmente descansar nas paredes brancas. curar-me penso eu – quartos brancos. janelas brancas protegidas por grades verdes esperança. paredes brancas. aparadeira branca. escondida numa mesinha de cabeceira também branca. chinelos brancos. pijama branco com o bolso bordado a letras douradas: casa de saúde dos aflitos. fundada em 1790 e inaugurada por sua excelência marquês do pombal. columbófilo. dono de vários pombais e outras excentricidades com aves de rapina – tudo branco. e um homem preso a um colete de forças negro feito por escravos embarcados na nau catrineta – e lá vem a nau catrineta anónima a navegar nas paredes do meu hospício. em ângulos de noventa graus. como se o mundo ainda tivesse um bom fim num dos cantos da minha imaginação – mas não. para a cada ângulo de visão uma recta com fim noutro ângulo – vejo tudo em ângulos que não sei dar nome. são ângulos meus. onde nas dobras faço acontecer sonhos estúpidos em histórias de coragem duvidosa. protegidas por roupagem branca lavada com omo – com omo toda a roupa e imaginação fica mais branca do que o branco – dentro destas casas brancas nenhum homem é culpado de nada. somos mesmo brancos dentro de olhos pretos – não sei onde estou. perdi-me. sei que estou a escrever uma missiva resposta a umas quantas “africas” no ponta da língua – quem me dera ter na ponta da língua agora umas respostas para todas as dúvidas brancas com que me embrulharam à nascença – talvez seja doença. talvez os diabetes em formação de ataque. excesso de doce. e as espadas empunhadas em gritos aflitos avisam o cérebro que está para breve o fim da lucidez e finalmente o triunfo do eterno sobre a vida terrena – no céu os anjos são brancos. tão brancos que até se confundem com as nuvens e todos os homens são transparentes. e os poemas a rimar com palavras que nunca foram usadas por poetas de olhos encovados de dor na procura das palavras certas. é preciso sobreviver para além do cabo da boa esperança. o fim do mundo – e as andorinhas brancas fazem ninhos de algodão nas mãos dos que querem escrever e não sabem. talvez um dia nasça uma capaz de voar para lá do que os homens sabem – não quero mais ter a cabeça no inferno. quero ir para o céu. para as nuvens que não vejo desde aquele dia em que me empurraram para o mundo cerebral – não quero cérebro. um homem sem cérebro não tem maldade e quando não há maldade não há lombrigas e sem lombrigas não há canibais a pescar e sem canibais não há leões. nem gazelas e muito menos carne no meio dos dentes e sem dentes não há mordeduras e as marcas não são nódoas. são beijos loucos nascidos para amar – eu gosto de amar. amo tudo. até o candeeiro da minha rua que fundiu por viver ao abandono de gente como eu – um dia pego num escadote e mudo-lhe a lâmpada. e depois talvez me enforque num filamento iluminado de esperança – e agora vou fazer o jantar. cabrito assado no forno com batata a murro. não gosto de cabrito. mas apetece-me dar uns murros – o mundo é cego e eu vivo dentro dele
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Não basta abrir a janela
para ver os campos e o rio.
Não é o bastante não ser cego
para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
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Alberto Caeiro