quemnão comentar terá10anos de infelicidade

Data 13/10/2009 12:18:18 | Tópico: Crónicas

A hereditariedade é coisa a que ninguém pode fugir. Todos nós temos um traço, um gesto, uma feição, um pequeno sinal parecido ou mesmo igual; enfim, parecenças que vêm do lado do nosso pai ou da nossa mãe.

- Mulher, olha como o nosso filho já mexe nos botões da informática, vai ser um génio!

A sua esposa olha o miúdo e de facto o catraio, caramba, com apenas nove anos, já demonstra uma inteligência que nenhum outro da turma deve ter.

- Ainda bem que nosso filho saiu a mim, não é assim, mulher? – Dizia o homem que só de orgulho daria para encher uma piscina olímpica.

Toda a gente conhece este género literário de tacadinhas, ou seja, se o filho é inteligente, sabes os números de trás para a frente, marca muitos golos, logo sai ao pai, mas, se o filho tem células burras, dificuldades em assimilação, a não saber sequer quantos lados tem um quadrado, está claro que o pai diz a correr que sai à mãe.

E com o Julinho não é excepção, nem caso extraordinário, ou seja, tudo o que ele fizesse de bom era fruto de uma herediteriedade masculina e todo o resto que não importa referir para que não seja acusado de machismo, seria fruto de ideias femininas.

- O nosso filho com onze anos e olha com ele se agarra bem ao piano a tocar aquelas melodias! – Dizia o pai que, de tão babado, quase que seria necessário um apanhador debaixo dos queixos.

O rapaz, de facto, era um expert em vários aspectos, era o orgulho do pai quando este, perante uma plateia de amigos, gabava as qualidades intrínsecas do seu filho que tão novinho já revela uma maturidade de criar espanto.
Com certeza que obterá um canudo na maior das facilidades. Ah, com certeza.

Que o puto tudo o que metia na cabeça aprendia, aprendia, lá isso era verdade. Poucos são os que são assim. Ele era nas contas de cabeça, era nos jogos de memória, sabia o nome de todos os reis de Portugal, sabia de cor o nome de todo plantel do benfica, porto e sporting (a ordem dos clubes foi sem segundo sentido), ele desmontava e voltava a montar rádios e outras aparelhagens sem que sobrasse peças. Um verdadeiro tolas para a sua idade.

Com a idade foi-se esquecendo de umas coisas, que é normal, e aprendendo outras. Boas notas na escola secundária enchia a honra do seu pai que, quando havia pequenas festas lá em casa, chamava o rapaz para o centro das atenções, fazendo questão de exibir o seu descendente aos demais e maravilhá-los com a sua rara esperteza.

O pai perguntava-lhe qual o símbolo quimico disto e daquilo e puto, tau, tudo certinho e direitinho, abordava-o sobre assuntos políticos e ele respondia tão bem ou melhor do que um político a sério. E todos se encantavam com aquele pequeno génio.

E o pai uma vez mais: – Não é a minha cara chapada, ora digam lá?

Os amigos abanavam com a cabeça em vez de dizerem que sim. De certos ainda mudos ao serem surpreendidos por tanta inteligência vinda de um rapaz de pouco mais de um metro de altura.

O tempo foi andando, pensa-se que as estrelas nascem e morrem como os seres vivos mas não é certo, o Julinho agora é o Júlio, vinte e cinco anos, quem diria que os anos avançam sem dar conta.
Nos mais velhos o tempo é mais ruga menos rugas, mais cabelo branco menos cabelo branco, o Júlio desde que entrou na universidade adquiriu um olhar mais atrevidote e gosta de sair à noite para relaxar a mente, meter conversa com o mulherio, e mostrar que tem talento para fazer o pino quando com dez cervejas no papo.

Com quatro matrículas na universidade continua no primeiro ano.

Compreende-se, as mudanças são muitas e, sem que ninguém lá em casa saiba, forrobodó também. Uma vez que os livros e as idas à biblioteca foram trocadas por copos de wiscky e noitadas em casa dos amigos até cair redondo no sofá.

Mais um ano de reprovações e a fúria lá em casa aumentou de nota e som até ao derradeiro dia do pai arrebentar com a escala do bom senso assim que soube que o seu filhinho pródigo, anda a passear os livros (e as garinas) lá na universidade de Lisboa onde ele tinha que desembuchar mensalmente uma pipa de massa, trabalhar fins-de-semana para que ao menino não faltasse nada, e virar-se para a mulher e dizer:

- Mulher, a quem é que este idiota saiu assim tão burro?!



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