trinta e 5

Data 26/10/2009 21:32:05 | Tópico: Textos


certo dia chegou-se a mim e gritou-me a primavera, corri à janela mas não reconheci na paisagem nenhuma semelhança à primavera, um manto branco-neve cobria a terra, da linha do horizonte ao meu olhar. aconcheguei-lhe o tronco nú com um abraço e fui deitar-me com ela junto à lareira. gostava de a ter amado mais nos dias frios, de a ter deitado mais vezes no meu colo, de lhe ter dito, como agora me apetece dizer, que não me importam as estações, o tempo, que tudo é quando queremos que seja e que sim, que ela tinha razão, naquele dia era primavera e eu sou triste por não me dar conta. falava muitas vezes sozinha, principalmente já noite alta, quando me sentia adormecido ou quando no gelo dos pés sentia morrer-lhe a pouco e pouco o coração. nunca soube de que falava, ouvia-a apenas em palavras rápidas e baixas, a sussurrar sobre o escuro das paredes, rente ao chão. dormia sempre sobre o lado esquerdo, quando lhe perguntei porquê respondeu-me que assim lhe pesava menos o coração; apeteceu-me chorar mas apenas me virei de costas, engoli em seco e fui sentar-me, como de costume, à janela, a ver passar a rua ou as pessoas na rua, daquelas pessoas que levam a rua consigo, porque sei da rua inteira de manhã e de apenas um pouco dela à meia-noite.



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