trinta e 9

Data 30/10/2009 21:13:02 | Tópico: Textos


muitas vezes me apeteceu perguntar-lhe se me amava, se também por mim chorava quando chovia, se eram os meus gestos que lhe aqueciam as entranhas. e muitas vezes estive certo que sim, à maneira dela, de um modo que eu, confesso, nunca me acostumaria. certo é que quando me falava de amor era a sua pele que tremia, inteira, desde os ossos à superfície do corpo. nunca foi expressiva o suficiente para que me permitisse amá-la do mesmo jeito que ela me amava, nunca mo soube ensinar. muitas vezes me falava de outras coisas quando lhe apetecia falar de amor, falava do azul do céu quando não há nuvens, da suave brisa que atirava contra o chão as ervas daninhas nos campos, nos canteiros, junto à raiz das árvores ou do coração. todas as noites se sentava a embalar a solidão, cabeça tombada sobre o colo, pernas cruzadas no chão da sala, as mãos, como poderei eu falar das mãos, sempre geladas, pendiam-lhe dos braços como mortas. não sabia o que fazer enquanto tudo à minha volta se transformava, amargas eram as horas e o tempo que as comia nos relógios, nas paredes, no chão, nos móveis, nos espelhos, no telhado, daquela casa abandonada a desencontros de duas pessoas que se amam tanto. não sabia o que fazer. dizia-lhe de como me doíam as palavras quando as não dizia, dizia-lhe do espaço entre os nossos braços, de como me atrapalhava o não jeito para grandes conversas, como me magoavam os silêncios, as faltas, as constantes mudanças. dizia-lhe tudo quando a noite vinha porque era à noite que tudo me doía mais. a ela só lhe ficava um adeus entre os lábios, preso no caco da boca, à espera de ser pronunciado antes do corpo abrir a porta e escapar. escapar do mundo, eu sei, que a matava, escapar de mim e do amor que não soube dar-lhe. voltava de madrugada, corpo gelado, deitava-se de costas para mim e ficava de olhos escancarados a ver amanhecer na fronha do lençol. costumava ouvir-lhe algumas lágrimas mas calava-as nas minhas.



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