POSTERIDADE

Data 17/12/2009 17:19:44 | Tópico: Poemas -> Humor

Para todos aqueles que se entrouxam com cauda de pavão, cabeça de avestruz, olhos de rinoceronte e pernas de formiga, andam pelos bares até de madrugada e escrevem poemas depois de bebidas duas garrafas de uísque.


Já desfiam o rosário fatalista dos dias que viveram,
Cantam entristecidos os nós daqueles que lhes faltam viver…
Dentro do peito a esperança duma imortalidade
Que depois da morte, modestamente, à porta lhe vá bater.

Escrevem quadras a monte, para concursos usam ironia
Esperam que o sorriso dos júris lhes premeie os poemas;
Outros declamam o medíocre com ar de pura sabedoria
Dão voltas e reviravoltas a montes de fúteis temas.

Rimam versos da mesma maneira, por condão ou por fastio,
Num desgaste silábico que sabendo mal tem que soar bem.
Assim acontecem os poetas nas noites onde o desvario
Faz parte do orgulho de quem já não sabe sequer se o tem.

- Agora vejam lá se não é bonita a canção:

Mê q’ride filhe ad’rade
Ist’é ô não uma canção?
And’eu pr’aqui constepade
E com muite amor no c’ração!

Ê ame a m’nha Maria
Que tá em casa a lavar
E dô-lhe q’alquer dia
Uma máneca de triq’tar.

Come borda bem a melher
Na sua salinha de jantar
Dê-lhe um dia q’alquer
Um bife p’ra c’zenhar.

M’nha mãe, q’rida mãe
Mãe come tu já nã há
Com’eu adore o mê pai
Nesta canção d’embalá.

Neste poema tã béle
E fiz uma canção
Fique careca sem cabel
E vô rimar com c’ração.

A minha rima é melhor
P’ra q’alquer um cantar
Escrevi uma canção
Que possa sempre rimar.

Falta s’à melodia
Mas isse vá de ch’nele
Até perque q’alquer dia
Já nem eu sê dele.

Cá ca gente é assim
É só poesia, poesia e poesia
Os verses sã p’ra mim
Uma ganda mara… maravia!

- Mas iste nã vem no decinário?

Nã faz mal se nã vem
O q’importa é que rime
Perquê quer é soar bem
Ist’é o qu’ê afirme.

Refrão:

Já cantê esta cantiga
Já cantê esta cantiga
Já cantê esta cantiga
Porra! Que dor de barriga!

Todos poetas, acho justo, somos um país de escritores,
Sem preocupações linguísticas, conhecimento da escrita…
Escrever por escrever, de poetas acham-se quase doutores
E apregoam poemas numa sociedade em comandita:
- Uns pagam o vinho. Outros, em troca, produzem a desdita.

Já vêm numa placa toponímica os nomes inscritos
A cada um sua avenida, que maravilhosa cidade!
Poetas sem originalidade, escrevem poemas prescritos
Pelo tempo que outros poetas deixou na posteridade.

- Vá lá intão más uma rimazitas…

Ora dá cá um
A seguir dá ôtre
Más uma quadrita
Que só três é poque

A professão dos bombers
É tã dura como os médques
Já nã vô fazer quelheres
Vou rimar com atlétques

Tanta lágrima chorê por ti
M’nha mãe que nem sei já
Tante prante ê cá sinti
Que fui à czinha bebê chá

O mê amor foi s’imbora
Sem dizer aond’ele’ia
Come n’ame ninguém agora
Vô p’ra casa da m’nha tia.

Dá-me deus a piedade
P’ra dá tude o que tenhe
Que já nã tenhe idade
P’ra dá o qu’empenhe

S’eles querem uma rima
Nós pimba, nós pimba
É assi qu’s’ensina
Raste parta já nã rima!

Nã rima mas ê rime
É come ler a sina
S’elas querem trolaró
Nós pimba pimba pimba

Cante más uma quadra
Ch’êa de g’ande esguiche
E abane a anca e o cu
E cante é o biche é o biche

Tante amor tenhe por ti
Que nã sê se ria se vá cherar
O mê pête diz que senti
Vontade duma rima cantar.

Já jogue na l’etaria
E nada me saiu
Nesta roda vida
Vô pr’a casa… do mê tio!

Assim, vou esperando que a originalidade surja de qualquer um
Que me diga as mesmas palavras, tantas vezes escritas, outras cantadas,
Mas de uma forma diferente, como se fossem palavras encantadas
Que todos os que as ouvissem tomassem como suas, e não fossem de nenhum!


António Casado
13 Julho 1995


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