Não acordem os pássaros

Data 08/01/2010 11:27:20 | Tópico: Textos -> Outros

Não acordem os pássaros, pois embora o canto por eles emanado encha o ar de alegria, este silêncio é bem-vindo.
Como é bem-vinda esta dormência, mesclada à sonolência, que se dissipa sobre esta matéria inerte e passiva.
Dezembro se aproxima e logo virão os meninos a subirem pelas mangueiras, bocas amarelas que com as frutas se deliciam.
Virão também os arranjos natalinos que, desde criança, tanto me angustiam. Nunca, por mais que perscrutasse, consegui captar dessas sensações as origens.
O primeiro de ano era então ainda pior. A perspectiva do que viria, aliada ao sintoma de coisas importantes inacabadas, projetos deixados pelo caminho…
Nem mesmo quando já adolescente, nos Reveillons, embriagado, aquelas vibrações me fugiam. À meia noite, quando fogos de artifício anunciavam a chegada do ano, era como se os mesmos estourassem dentro do meu peito, abrindo-me crateras, destruindo-me as entranhas.
Mais tarde percebi que se manifestavam prenúncios de uma felicidade que nunca alcançaria, não que aparentemente houvesse motivos. Simplesmente o universo não se encaixava às minhas expectativas.
Mesmo os meus momentos mais felizes; o ingresso na universidade; Madalena, o nascimento dos filhos, eram cerceados por uma nostálgica aura negativa.
Apesar de tudo, fiz o que me cabia, amei, chorei, trabalhei, plantei árvores, tive filhos, me aventurei em alguns rabiscos, projetos de um livro.
O vaivém da rede, na cadência dos meus pensamentos, traz noites, encerra dias.
Por quanto tempo aqui estarei, a espreitar os meninos, acompanhando o voo dos pássaros que agora dormem…
Desvio, por instantes, a minha atenção para o féretro que segue à distãncia, acompanhado de louvores e cantigas.
Não imagino quem seja, não me interessa. Já tantos vira que há muito a minha curiosidade se esvaíra.
A casa está vazia, quieta, a mobília antiga resiste ao tempo.
Todos se foram. Madalena para sempre, os filhos ás suas conveniências. Às vezes aparecem, não sei se por obrigação e, nessas ocasiões, um mal-estar se estabelece.
Com suas indagações quebram o ciclo, aborrecem-me, pertubam o meu silêncio.
A casa é grande e receptiva, e tenho essas mangueiras que sombreiam as minhas tardes.
Acordo cedo, recolho-me quando me convém.
À hora das refeições a voz de Madalena, distante.
- Vem comer Francisco!
Ouço passos que se aproximam…
Mantenho-me na defensiva.
Quem seria o intruso…
- Pai!
- Por que não foste ao féretro de Amadeu?
Mantenho-me calado.
Espero, assim, não acordar os pássaros que, presos dentro de mim, já não alçam voos. além dessas mangueiras, dessa rede, dos meninos que hoje não vieram, de Madalena que não virá…



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