O relojoeiro sem tempo

Data 19/01/2010 15:59:02 | Tópico: Contos

Eram dele todos os relógios. Não as horas, dizia amiúde para quem o quisesse ouvir.
Dizia-o por debaixo do monóculo com que afinava a luz do dia nas pinças pudicas com que lhes tocava os órgãos expostos, desventrados, oxidados pela corrosão salobra em proximidade à borda-d’água. Milhentos relógios que guardava em precisão cirúrgica e que cuidava em hiantes de abismos matinais.
Ria-se deles, algo trocista. Sem ele, seriam... nada. Caixas disfuncionais de ressonância vazia.

Perdera há muito o rasto do dia em que, cada um, chegara à sua vida. Alguns (muitos) tinha quase a certeza de que os herdara num qualquer tácito testamento - de pai para filho, de espaço em espaço, de loja em loja, onde a família assentara arreais, da Rua da Alegria à Belavista, onde agora, para seu desconcerto, os sons do rock suplantavam a aficion dos demais passante, que ainda há tão pouco tempo, se rendiam à sua arte.
Da costureira de bairro, à varina, passando pela menina de análises laboratoriais, que trabalhava, dissera-lhe um dia, no Parque das Nações...

Outros (dos seus relógios) juraria que os havia comprado em leilão, em hasta pública. Tudo podia acontecer, não é verdade? E acontecia, não raras vezes, o que, em rigor da história e para o caso, não mudada uma virgula.

Eram dele todos os relógios, portanto, e, para que constasse, dele a vontade de a todos manter vivos - dava-lhes corda, a espaços, paulatinamente, um a um, sem desconcentro. Centrava-se na presunção de que, dessa maneira, cada graveto de metal de que cada qual era composto, cada átomo de poeira que tentasse encravar a engrenagem, cada rolamento minúsculo, cada filamento de cobre, todos, mas todos, fosse qual fosse a função ou o seu oposto (virtude disfuncional), sem qualquer dúvida, saberiam onde e quando, estava a pinça do comando, alinhados em carreira, antes que manifestassem a seus olhos inequívocos sinais de estrabismo e cegueira. De agonia pulsante. De desvio. De disrupção. Eram relógios certeiros, de ritmos obedecidos. Nutridos e animados pelo desvelo de seus cuidados…Afirmava!

Eram dele todos os relógios, pois, tão óbvio quanto claro, que comandava ao som crepuscular de um barítono escondido algures numa qualquer distante estação de que, ele, e apenas ele, detinha a chave mestra em mão. Não a vendia nem a trocava por qualquer outra atracção e, como já se disse, noite e dia zelava, para que, há hora exacta, no minuto certo, na casa toda, unida na vertical, por patamares, varandins, escadas - angulares, de caracol - , de alto a baixo, em cada piso, em cada sala, em cada quarto, em sintonia, ecoassem certas as badaladas, os cucos saíssem, se cantassem as “avés-marias” nas madeiras ressequidas em sincronia ritualista, pois que - ele aprendera na Bíblia -, Deus tivera a certíssima intuição de criar o mundo ao sétimo dia...
E, se assim fora, só pudera ser porque, nalgum lugar escondera o relógio da criação - Um solista confiante que lhe havia soltado a nota certa em pavilhão d’ouvido…Ao sétimo dia, fazia todo o sentido!!!
Um alquimista, alguém que sabia de metafísica? - indagavam do demais.
Pois, a isso não tinha como responder… Desde criança, mais cedo que cedo, o que lhe fora dado aprender fora da mecânica dos relógios, da forma exageradamente contorcionista e necessária para subir e descer a todas as bancadas, a todos os escaparates, a todos os expositores, sem nenhum esquecer, e, não menos, a importância de ter, bem exercitados, todos os cinco sentidos. E um sexto, se é que isso poderia acontecer.
Não sendo mareante, como se disse, vivia à beira mar e sabia da importância de saber medir a distância angular dos astros: o quão distantes estão acima do horizonte… Na sexta parte do circulo, num ângulo de 60º, na perfeição do sextante, o seu sexto sentido, dera-lhe então a necessária intuição para, naquele mar de grunhidos, em prenuncio de tempestades, por o corpo a pensar. Todo o corpo, indo mais e mais longe, que as leis lógicas da razão. É de emoção que estamos a falar…

Tomou-se de solipsismos - afinal não fora sempre a sua vida, a mais completa solidão? -vestiu-se a rigor. Casaco azul escuro, assertoado. Não antes de se ter lavado minuciosamente, num banho de tina, demorado. Ainda envolto numa toalha aquecida, dirigiu-se frente ao espelho. Num bafo quente, desembaciou-o. Olhou-se demorada e minuciosamente. Pegou na navalha, que afiou. Colocou-a de lado. Depois a espuma, numa emulsão meio oleosa - a pele seca a tanto obrigava. Mexeu e remexeu, até que, por fim, quando a caneca transbordou, achou o tempo certo. Esticou a pele o mais que pode, deslizou a lâmina sobre a maçã de Adão.
Não, ainda não era o momento.
Dirigiu-se ao quarto. Vestiu, uma a uma todas as peças previamente preparadas. Calçou-se "que um homem nunca pode ser apanhado descalço!!!". A custo, dobrou-se, abotoou os atilhos dos sapatos. Olhou-se de novo no espelho, agora do quarto. De alto a baixo... Aproximou-se da janela. A tarde caia nos fios de telefone. O advento da electricidade... "grande obra a do homem, sua Santidade"
Esboçou um sorriso trocista. Colocou o relógio no pulso, cofiou o bigode...

Aos poucos, um a um, todos os relógios da casa deixaram de trabalhar. O silêncio total. Apenas os ratos, desinquietos, trepam mesas desconchavadas pelo caruncho e os pés de galo das cadeiras. O cheiro nauseabundo.
Em forma disforme, uma teia de aranha tece a rede e une, um a um, cada peça de um puzzle em desconstruto.

Foi a enterrar ontem. Dizem, contudo, que já tinha morrido há muito … ninguém sabe em rigor quando. Eram dele todos os relógios…
Não as horas.
O seu nome? Arguto. Ludovino Arguto. Ou Lulu, para os amigos ...

***

Nota: Este conto faz parte da "Saga dos Lulu's", um conjunto de contos de que alguns já estão aqui, outros só no meu blog de prosa, para onde vos convido. Grata, Mel





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