DESABAFO

Data 28/01/2010 20:01:44 | Tópico: Crónicas

DESABAFO

Hoje ao almoço, algo se passou que nesta hora, a de ir para penates, me desafia, quase obriga, a escrever, a desabafar, sobre o acontecido. Excepcionalmente, estava voltado para a televisão e, no instante em que saboreava um gole de vinho verde de aceitável qualidade, deparasse-me a cena que me obriga a este divagar: Em Port-au-Prince, no rescaldo da tragédia, um grupo de homens disputando com uma agressividade que dá para entender, a posse de um saco de arroz. Tive um impulso de suspender o gole de vinho, discuti comigo mesmo numa fracção de segundo, se o devia ou não fazer, se esse meu gesto tinha alguma importância para o caso. Enquanto discutia comigo – e foi uma fracção de segundo – esqueci-me do vinho e fiquei com os olhos presos no ecrã, empíricos em relação à sequência do espectáculo de destruição, mas o pensamento parado na cena de há instantes. Perguntei-me quantas cenas deste tipo terão ocorrido nestes dias neste Port-au-Prince maltratado pela natureza. Emocionalmente esmagado pus-me questões diversas, ao ponto de questionar Deus sobre o que se tinha passado. Ao ousar este caminho pensei na infinidade de tragédias que nesta hora acontecem noutras partes do mundo, aconteceram através da história, ao fim e ao cabo, no sofrimento humano, sobretudo quando ele é incomportável. Vasculhei uma resposta, busquei uma lógica, mas nem resposta, nem lógica. É como se uma diáfana nuvem quase transparente, mas suficientemente translúcida para alcançar a outra banda, me impedisse de atingir a verdade. Eu sei que há tragédias, muitas, de toda a ordem, que estão muito nas mãos dos homens, delas tem toda ou muita responsabilidade. Se falamos em guerras, a quem atribuímos a culpa? Mas há sofrimentos que a nossa inteligência não consegue atribuir ao homem. A quem atribui-la? Só se for a Deus. Mas nós não somos obrigados a crer em Deus e sendo assim estamos perante meras e sofridas fatalidades de uma natureza sem norte, fantástica nos espectáculos e cenários que nos oferece, mas implacável quando se resolve a desancar sobre o homem os seus ódios. Se crer em Deus não é simples, crer no Acaso – estaríamos perante a sua fantástica obra, desde a poeira do deserto ao assombro do pensamento humano – reside para mim no mais absurdo das conjecturas de que seja capaz. Sim, tenho sede de luz, de um foco que me ilumine o caminho. Só que essa luz não é evidente, não se mostra. Tudo que me resta é crer que esse Deus para o qual não vislumbro alternativa, tem na manga uma resposta que algum dia se mostrará desconcertante e esclarecedora. Mais longe não consigo ir no meu conjecturar. Como Santo Agostinho, não consigo meter o mar na pequena poça.
antonius


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