A OUTRA BALADA DA CASA

Data 31/01/2010 08:00:53 | Tópico: Poemas

"do que eu me lembro
é do esquecimento da casa
do ressoar dos passos que doem
com o silêncio
quando os dias vão
na sombra da tarde."

José Félix, in Teoria do Esquecimento


estas paredes vazias
guardam no breu da memória
as cores de tantos quadros
que um dia arrematados
num leilão foram embora

este sofá remendado
não acolhe mais o cansaço
do homem que aqui havia
e numa tarde pôs-se a pensar
que sentia sono e dormiu
para nunca mais acordar

esta virgem em madeira
no oratório esquecida
deixou de fazer milagre
e nem prece mais ela escuta
mas implora que do peito lhe arranquem
a espada que o faz sangrar
e a levem de vez desta casa
para ir fazer companhia
a outras peças
outras velharias
num antiquário qualquer

esta cama de casal
testemunha fiel e ocular
de três ou quatro rebentos
sobre seu colchão fabricados
no tempo dos fartos dinheiros
agora se vê violentada
pela fome dos cupins
e a crueldade das traças
terá por destino o lixo
(quem viu nascer tantas vidas
não merecia este fim)

já o piano de cauda
parece aliviado
livrou-se de vez dos concertos
e embora mutildado
safou-se das vesperais
três teclas foram quebradas
não fabricam outras iguais
(também lhe falta um pedal)
mas sob um silêncio de morte
dá o seu último recital
sem qualquer toque de dedos
toca em sol sonolento
o prelúdio do nunca-mais

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júlio
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