A MISSA DE MÊS QUE NÃO FEZ UM MÊS

Data 01/02/2010 05:49:12 | Tópico: Poemas

Hoje, fui à missa de mês de minha mãe. Errante na data, não fez ainda um mês que ela morreu. Marquei a data errada. Talvez ela já estivesse morta antes: poeta, sem intimidade com a igreja onde cresci, ainda que não queira tenho premonição.
Fui sentar-me ao fundo da igreja de São Gabriel, no Jardim Paulista, bairro onde cresci, para que não me vissem.As lágrimas que pela primeira vez, desde o dia da morte, me caíram dos olhos. Não ficaria bem chorar tanto tempo depois. Não sei se acreditariam nelas. Também quis fugir dos abraços de pêsames. Não coloquei paletó e nem gravata, porque não combinam comigo. E também ela, a mãe, não gostaria.Sabia o meu jeito.
Ao altar subiram dois sacerdotes, com estolas roxas, sinal de luto, assim manda a igreja. Um deles, decano, já nos seus noventa anos, o Donato, foi meu professor de latim, me deu um beijo na testa, me abraçou forte. Mas se esqueceu que me reprovou duas vezes, talvez porque tivesse a certeza de que eu nunca seria padre - as pernas da secretária do mosteiro - a única mulher que lá entrava, em seus 17 anos -, bem diziam a minha nenhuma vocação para a vida monástica e principalmente o celibato, que nunca aceitei. O outro, Vicente, foi meu colega no seminário.
Não pensei que soubessem falar tão bem de minha mãe. Na hora da homilia deixaram que eu dissesse o meu Prelúdio de Uma Elegia. Cheguei até ao fim sem chorar, porque na hora não podia. Dois secretários de estado estavam lá: minha mãe trabalhou cinquenta e dois no serviço público.Serviu secretários de estado e governadores calhordas - um deles chegou a me prender, pela minha filiação ao Partido Comunista Brasileiro, quando ainda ia na ilegalidade e eu só tinha dezoito anos. Faz um tempão. Minha mãe dizia sim, senhor e pois não, não tenho culpa do meu filho ser assim. E foi me tirar da cadeia, mas eu não me emendei nunca. Voltei a ser preso de novo. Outras vezes ela não conseguiu me tirar, senão à custa de advogados que lhe cobraram o salário inteiro - um, Antônio Claudio Mariz de Oliveira, talvez o maior criminalista do Brasil,este me defendeu de graça e pôs o seu escritório à minha disposição. Prezo por ele e pelo desembargador Valdemar Mariz de Oliveira, já morto, seu pai, que também me defendeu de graça,usando seu nome no tribunal, onde foi desembargador e secretário de estado Eu não teria como pagá-lo. Tirando sua toga, foi como advogado. Defendeu-me de graça, repito - não teria como pagá-lo -, quando injustamente - não sei o que era justo na época - fui incurso na lei de segurança nacional - como se os meus versos oferecessem algum perigo a quem tinha armas engatilhadas -, acusado, por um promotor canalha, que aceitava laudos falsos, de falsos médicos-legistas,como o cafajeste Harry Shibata, que "suicidou" o jornalista Vladimir Herzog, morto a pancadas nos porões da ditadura.Fui acusado de agitação e baderna, quando eu queria um país mais justo. No velório de minha mãe, Antônio Cláudio não largou um minuto de mim.Foi o irmão que eu não tive.
À noite,ontem, sozinho, saí um pouco. Bebi demais, fumei além da conta - eu e os meus vícios. Voltei pra casa, mergulhei na cama vazia. E vi que me faltava um colo. E então chorei um pouco mais, antes de dormir.
Foi a primeira vez que me senti órfão. Da vida. De tudo. De mim, principalmente de mim.

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júlio


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