Ainda se ao menos tivessem tido um filho...

Data 12/04/2010 09:41:34 | Tópico: Textos

Ao fim de alguns anos, não se chegando a saber muito bem quando foi que aconteceu, aquilo que algum dia sentiram um pelo outro, se transformou naquela outra coisa que já não era amor nem desejo, muito menos paixão ou desassossego da alma...
Na melhor das hipóteses, seria talvez uma espécie de amizade, de um companheirismo ou se calhar até já nem isso. Talvez não passasse mesmo de um mero cumprimento de um acordo nupcial, uma espécie de condenação a que ambos se entregavam como quem não tem outro remédio...
Após aquele acto forçado e animalesco onde os corpos se fundiam freneticamente desesperados, numa espécie de luta por uma busca egoísta de prazer, adormeciam em almofadas cheias de penas e de silêncios e voltavam a acordar de manhã, já cansados um do outro mas resignados e prontos para mais um dia oco, igual a todos os outros de ontem e muito provavelmente também aos de amanhã.
Seguiam juntos no mesmo automóvel a caminho do emprego, salvos pelo auto-rádio que preenchia o espaço há muito deixado vago pelo diálogo.
A noite regressava e com ela regressavam também, envoltos num silêncio tumular, para mais um serão interminável. Não fossem as televisões da casa que os empanturravam de novelas e futebóis, e seria um estar sem estar, à espera do que nem eles sabiam estar.
Roíam os dias e mastigavam as esperanças murchas, oxidadas pelo tempo, que iam engolindo devagar. Afinal até tinham tempo de sobra para digerir a vida e acalmar as dolorosas indigestões.
Ainda se ao menos tivessem tido um filho...



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