UM POUCO DE MEMÒRIA

Data 08/02/2010 08:57:49 | Tópico: Poemas

Havia a solidão seca do pátio. E homens que povoavam o pátio. Eu, entre eles. De modo que não éramos homens, mas números. Recebíamos o café ralo e um pão com manteiga pela manhã. Um deles se aproxima de mim - a boca sem dentes:
- Menino bonito, me dá um cigarro.
Tenho um miserável maço no bolso. Dou-lhe o cigarro e o fósforo. Ele sai fumando, dizendo que é Jesus Cristo.
A filha do dono do hospício se aproxima de mim. Com ela ninguém mexe. Devia ter mais ou menos a minha idade.
- Você é preso político, né? Filho de um agitador que dá aulas na Getúlio Vargas, na 9 de Julho, não é?
Eu respondo que sim. E pergunto se posso fumar um cigarro.
Ela se abre, mas seca por detrás dos óculos. Usa um jaleco branco. Mas foi ali que pela primeira vez que vi um sorriso - um riso de dentes brancos.
- Fuma na minha sala.
Cruzo dois ou três corredores. Ela, a moça,do lado.
- Pode fumar aqui - ela diz, também acendendo um cigarro.
Ela me pergunta se apanhei. Eu respondo que não, embora traga no pescoço uma marca, que começa a formar um hematoma, sangue pisado - dizia minha avó.
- Isto aqui é uma clínica de recuperação. Meu pai dirige isto há anos. Aceitamos presos políticos, que é pra ver se se emendam. Parem de agitar na rua.
Eu ergo os olhos escandalizados e pergunto a moça, que mais tarde soube que se chamava Míriam:
-E batem também aqui dentro?
Ela me olha com desdém - diz:
-Seu advogado, Júlio, o doutor Mariz, está na outra sala. Pegue suas coisas e pode sair com ele.

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júlio

Este depósito de seres humanos ainda existe. Chama-se Clínica Morumbi, em São Paulo. Foi usada também como depósito de presos políticos, tratados à base de choque, o que não foi o meu caso, porque meu advogado - filho de um secretário de estado (ele também seria secretário de estado depois)e me defendeu de graça. tirou-me a tempo.aliás, sempre de graça, porque eu nunca poderia pagá-lo, tirou-me da prisão outras duas vezes. a ele, antônio claudio mariz de oliveira, todo o meu carinho e gratidão.



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