Auto-retrato a preto e branco

Data 17/02/2010 23:06:11 | Tópico: Poemas -> Introspecção


Sabes porque me dói a voz
Quando grito o teu nome
Na fragilidade
Das horas vazias
E o tempo se esgueira
No sopro da corrente de ar?



Não questiones o meu olhar,
Nem tentes adivinhar
Os segredos guardados
Nas páginas soltas
Do livro da minha vida;
Por elas saberás apenas
Sílabas de hinos inacabados
E versos de poemas que iniciei…

São pedaços de projectos,
Sonhos desvanecidos
Caiados de branco e ocre,
Como as casas térreas da minha aldeia;
São viagens de magia
Num circo onde os palhaços
Coloridos e espalhafatosos
Me embalavam no riso solto
Da alegria sem regras;
São mãos que se fecham
Na concha de um abraço,
Beijos trepadeiras
Que crescem pelas paredes nuas
A atapetar a maciez das almas;
São raios de luz
Trespassando a sombria
Aura dos momentos azedos,
Ateando o fogo da loucura,
Da paixão e do encantamento.

São fios de água morna,
Quente, gelada, macia,
Acorrentados no caudal
Das lágrimas selvagens,
Felizes e magoadas,
Eruptivas e telúricas,
Paridas nos campos de pedras
E cardos,
Nas planícies vesgas
De mundanas labutas,
Mimadas de prosas e solilóquios,
De quadros a óleo e retratos
Fantasmagóricos,
Pardais e andorinhas,
Primaveras e fontes
De água com imagens
De ninfas e sereias virgens.

Se procurares por mim
Não fales do meu nome:
Ninguém te saberá dizer de mim
Mais do que um “não sei”!
Achar-me-ás nas marcas dos passos
Dos carreiros sem destino;
Nas sombras acolhedoras
Das copas das árvores
Dos campos em pousio;
Nos silvados bravios
Que bordejam os caminhos
Onde apanhei amoras silvestres;
Nas hortas sedentas
Onde encaminhei a água
Para os canteiros de alfaces;
Nas noras abandonadas
Em cujos alcatruzes corroídos
Pelo bicho da ferrugem
A água subiu límpida
No rodízio compassado
Do burro que suportava o esforço;
Nas noites de lua cheia,
Amenas de Abril ou Maio,
Espectador das estrelas cadentes
E ouvinte das estórias de encantar!

Saberás de mim se souberes ouvir
O silêncio dos tempos idos,
Traduzindo as cantigas intemporais
E o rumor das correrias e dos jogos
Das aventuras lavradas como os campos
Pelo arado puxado pela junta de bois,
Dos sonhos desajeitados de quem
Fazia do sonho a arte de estar vivo
E olhava o sol de frente
A conquistar o futuro!

Não entendas as palavras
Pelas palavras, apenas,
Mas sobretudo pelo que elas permitem
Adivinhar!
Em cada frase o lamento é falso
E o regozijo absurdo…
O silêncio vale pelo seu volume
E peso
Pela sua profundidade
E estridência!
Mantém-te atento à teimosia
E ao desalento,
Porque uma e outro decifrarão
O segredo que não existe
E que me consolida!

Não te deixes cativar pelo riso,
Pela aparência do optimismo
Pela agressividade do destemor…
Não olhes o corpo vertical,
Mas a sombra submissa, escrava,
Que se arrasta na peugada dos passos
Gradualmente mais lentos!

Se me encontrares verás que sou
Outro que não eu,
Outro diferente daquele que captaste
Na fotografia colorida
Que guardaste como prova!
Eu mesmo me sei outro
Quando me olho no espelho
A procurar na sombra das rugas
A minha real essência!

Deixa que te fale verdade
Uma última vez, a derradeira:
- Não procures na escuridão
O que só a luz evidencia,
Nem escondas da luz
O que a escuridão revela!

Há homens assim!
E esses são os poetas!


Em 17.Fev.2010


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