O homem que andava sobre os trilhos

Data 20/02/2010 00:15:36 | Tópico: Contos

Andava sobre os trilhos, desafiando o perigo.
Só assim munia-se de coragem para enfrentar a vida.
Sentia-se importante, superior.
Abria um sorriso.

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Não possuía uma formação específica, pois
a luta pela sobrevivência fez com que exercesse atividades diversas, sem nunca se aprofundar em algo seguro e definitivo. Tampouco os estudos concluíra, apenas o ciclo básico, o que, ao menos, permitia-lhe sobreviver no hostil mundo do cifrão.
Mas os tempos difíceis batiam à porta.
Trabalhos esporádicos, a família desfeita.
Começou a sentir-se inútil. Sem sentido a vida.
Danou a beber.
Num feriado de Corpus Christi, no bar do “Seu Irineu", encheu a cara. Bebedeira sem limites.
Residia distante da cidade, mesmo itinerário da ferrovia.
Iniciou neste dia a sua peregrinação pelos trilhos.
Não ouvira a sirene e por questão de segundos não fora esmagado pela locomotiva.
Sentiu-se forte, na sua pequenez, antes, assumida.
Desafiara o perigo. Já não era " um qualquer”.
Era o HOMEM que andava sobre os trilhos.
Perguntassem-lhe, doravante, o seu nome e a resposta viria convicta: Aristides dos Santos Filho, “o HOMEM que anda sobre os trilhos”.

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No céu pipocam fogos de artifício, numa festiva noite de São João.
Distingo ao longe o vulto de Aristides a caminhar sobre os trilhos.
Ontem o trem não veio.
Hoje o trem não virá.
Jamais o trem virá.
Mas para Aristides dos Santos Filho isso não importa, pois andar sobre os trilhos é a derradeira esperança de tornar-se, um dia, visível.



do livro "Boca do Estômago".


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