Eis a questão...
Data 20/02/2010 17:13:30 | Tópico: Contos
| O “tempo ocioso” com o qual, involuntariamente, fui agraciado nos últimos dois anos têm me proporcionado a leitura de inúmeras obras literárias. Mas, se por um lado desligo-me, momentaneamente, dos problemas, tenho a impressão de que essa excessiva fuga da realidade, através da leitura, acarreta, já, sérios danos à minha perturbada mente. Sempre achei natural, e até de certa forma saudável, o pleno envolvimento com os personagens de um livro, de um filme. Penso ser isso uma indicação clara da assimilação do que é transmitido pela obra, já que não nos colocamos apenas na posição de espectador, mas de interlocutor que participa diretamente da vida do personagem. Mas a minha preocupação advém do fato de que ao acordar, novamente, madrugada ainda, na rotina de novas entrevistas de emprego, mais do que um envolvimento penso que descobri a minha verdadeira identidade. Devo salientar que nesta noite acabei de ler Metamorfose de Franz Kafka, ou melhor, a enésima releitura de magnífica obra. Percebi isso ao abrir os olhos. De repente achei as dimensões da cama exageradas para o pouco espaço a ser ocupado. E como era alta! Ao dirigir-me ao banheiro levei um susto, já que por pouco não caio dentro do ralo. Sai apressado sem ao menos lavar o rosto (ou seriam as mandíbulas) já que gigantes ponteiros, de um não menos relógio, alertaram-me que estava atrasado. Na rua andava desconfiado e atento para evitar que alguém me pisoteasse. Notei que das seis patas apenas duas estavam calçadas. Estranhamente ao chegar à quilométrica fila que ser formara defronte à empresa comecei a sentir-me melhor. Todos eram parecidos. Assim como eu possuíam seis patas, antenas e uma humildade que se confundia com resignação. A minha preocupação com as patas descalças se dissipou ao notar que isto ocorria com todos ali. Passaram-se horas, até que se aproximasse a minha vez de ser atendido. - Atenção! As senhas de hoje se esgotaram. Tentem chegar mais cedo amanhã.
Minha paciência não suportou. Por três dias seguidos ouvia o mesmo disparate. Precisava reivindicar os meus direitos de inseto: - Escuta Senhor. Há dias tento ser atendido e não consigo. - Por favor, receba ao menos o meu currículo. - Meu novo é João Louva a Deus... Nesse momento interrompi a minha explanação e saí apressado do local. É que a faxineira com a sua enorme vassoura, sem se aperceber da minha presença, por pouco não me levava junto com os detritos que, distraidamente, recolhia a um saco plástico. E cá estou agora, travestido de Dom Quixote e com a petulância de um Robin Wood a meditar: Sou ou não sou inseto? Eis a questão...
Do livro "Boca do Estômago".
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