Ilhas de solidão

Data 23/02/2010 11:05:01 | Tópico: Contos

Começaram a aparecer na despensa,
Notei tais presenças e, na ocasião, não dei muita importância.
Certamente saíram do esgoto e, desconcertados, ali foram refugiar-se.
Cedo, percebi que me enganara.
Multiplicaram-se rapidamente. Espalharam-se pela casa inteira, a disputarem todos os espaços.
Via-os às espreitas, a se esconderem por entre os móveis, a danificarem os livros.
Intrusos a posarem de hóspedes.
E aquele barulho irritante, como se de mim zombassem.
Atirava-lhes sapatos, chinelos e tudo que tivesse às mãos.
Quebrei várias vassouras, no desejo incontido de massacrá-los.
Inútil.
Tentei outros métodos, mas também não funcionaram.
Pareciam conhecer os mecanismos das ratoeiras, delas retirando os nacos de queijo sem que desarmassem.
Denotavam pretensões de expulsar-me, o que, indubitavelmente, acabariam conseguindo.
Por outro lado, mantinham-se à distância, e de certa forma, aparentavam-se cordiais. Aos menos respeitavam o meu repouso, da cama não se aproximando. Até quando?
E receando que isso viesse a ocorrer, ficava acordado e quando, madrugada já, pegava no sono, o mesmo era atribulado de pesadelos.
Via-os aproximarem-se. Subiam pela cama. Deslizavam pelos lençóis. E, finalmente, o contato repugnante.
E quando exaltado, acordava, molhado de suor, já o dia clareara.
As olheiras se pronunciavam, fruto das noites mal dormidas.
Certa manhã, tomei uma decisão definitiva, já com indícios de desespero.
Retirei todos os livros da estante, encaixotando-os a seguir. Antes que fossem destruídos, guardá-los-ia em lugar seguro.
Empacotei todos os mantimentos e pedi a Esmeralda que os levasse. Passaria a fazer as minhas refeições fora.
Adotei ainda, outras providências, procurando livrar-me de tudo o que pudesse atraí-los.
Esmeralda aprovou a minha atitude. Antes ela, já ameaçara abandonar o emprego, o que me motivou uma solução urgente.
Dias depois, como permanecessem, e consciente de que não conseguiria eliminá-los, contratei uma dedetizadora.
Pude, enfim, ver-me livre das companhias indesejáveis.


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Estive lendo até tarde da noite.
Uma sonolência embaraçava os meus olhos, quando o vi ao pé do armário.
Olhos miúdos, esguio.
Não pude conter a satisfação.
Há meses, desde que fizera a dedetização, sentia aquela ausência. Se antes dormia pouco, passava agora, as noites em claro.
A solidão a jorrar pelas janelas abertas, perdendo-se, na noite escura. O vazio interior, no silêncio angustiante.
Andava pelo quarto, tentava ler, pensar em outra coisa.
Fiquei quieto, olhando por cima das páginas, cujas letras se embaralhavam, dando ao texto um sentido desconexo.
Passei a mirá-lo, frontal e diretamente.
Por mim parecia interessar-se.
Hã quanto tempo ali estaria, quantas noites?
A contemplar a minha agonia...
Mas, só agora aparece e sua presença é bem-vinda.
O livro escorrega de minhas mãos.
Acordo com o grito de Esmeralda:
- Seu Marcos, acorda!
- Um rato!
O meu reflexo é suficiente para que, num salto, possa interceptar-lhe o gesto e segurar a vassoura no ar, possibilitando a fuga do roedor.
Enquanto Esmeralda se retira, perplexa e irritada, diante de minha atitude, abro as cortinas e os primeiros raios de sol iluminam o quarto. Trago nos lábios um sorriso.
O dia se revela promissor, pois sei que as minhas noites já não serão mais ilhas de solidão.



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