ZECA AFONSO: ENQUANTO HOUVER VOZ...

Data 23/02/2010 20:14:02 | Tópico: Poemas

Que fazer nos dias de Inverno, cogitava Alice, quando o frio nos tolhe a alma e não se vislumbra sinal de temperança.... A ternura dos quarenta leva-a à música e a música a um amigo do pai que jamais esquece: o Zeca Afonso. Puxa do seu leitor de MP3 e procura aleatoriamente, certa de que, fosse qual fosse a canção, o tempo amainaria a sua inquietação. Calhou-lhe a Arte de Furtar, com um poema de Jorge de Sena e a voz cúmplice ecoa ainda nos seus ouvidos: “Sempre há quem roube quem eu deseje...”.

Mas porque se lembrara ela, naquele momento, naquele preciso momento, daquela música, daquele autor, que afinal em pessoa mal conhecera, quando ainda andava de bibe e sacola? Também ela estivera no ginásio cheio, cheio a abarrotar da Escola Técnica (agora Sebastião da Gama) onde o corpo de Zeca Afonso repousava entre amigos que há muito sabiam – como ele sabia – que no dia em que a sua voz não se pudesse fazer ouvir, morreria. A morte saiu à rua, num dia assim : 23 de Fevereiro de 1987. Afinal havia outras razões, para além da razão, para estar triste. Onde estão agora os bardos – reflecte - que cantem generosamente até que a voz lhes doa, a denúncia de um tempo triste, que o Zeca jamais imaginara que os homens do seu tempo pudessem esconder o sol por não saberem o que fazer com a luz.

Alice mansamente, desceu a rua, passou junto às antigas instalações do Círculo Cultural de Setúbal onde tantas vezes estivera ao seu colo, enquanto esperava pelo pai que ia dar aulas de português aos menos afortunados da sorte, actos de amor que hoje parecem estupidamente estúpidos, e dirigiu-se ao Mercado do Livramento, onde comprou, simbolicamente e em recato, um ramo de cravos vermelhos, que foi distribuindo, num aparente acto de loucura ou de paixão, por todos quantos dela se abeiravam...

arlindo mota (arfemo)

*do livro "ALICE NO PAÍS-DE-FAZ-DE-CONTA"
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