SUECADA SEMANAL

Data 27/02/2010 15:40:09 | Tópico: Crónicas

SUECADA SEMANAL

Viajar ao passado, eventualmente à minha infância, é um imperativo da minha sensibilidade, a que não consigo resistir, de vez em quando.
Naquele tempo não havia televisão e o próprio rádio era um luxo só para alguns dos que viviam na cidade. Esta não deixava de proporcionar alguns atractivos de que a aldeia de modo algum dispunha. O meu pai, na sua simplicidade mas marcado pela experiência da vida urbana, não se dispensava de, duas vezes na semana se deslocar à noite (cedo o jantar) à sede do concelho, jogar a sua suecada ou partida de bilhar no café do Pedro, era uma espécie de tónico. Pela uma hora da manhã lá ia ele de regresso a casa, lá no alto, quatro quilómetros bem medidos. Nunca teve qualquer incidente nessa caminhada das noites escuras e por vezes tormentosas que nem a lua iluminava, até que uma noite, caminhando estrada acima, e sem quaisquer casas a ladeá-la, só pinhal, ouviu um ruído estranho de folhagem. A noite estava serena, pelo que só podia partir de coisa viva. Depressa teve consciência de que se não tratava de qualquer vulgar animal mas sim do animal humano, pela cadência dos passos que se acentuaram na sua direcção. A sua reacção foi cerrar os punhos e manter-se inalterável no seu ritmo, como quem não tem nada a temer. A inesperada criatura humana acompanhou-o por alguns segundos, até que ficou para trás, pacificamente aquietada. Meu pai, conquistada a tranquilidade, mas de punhos ainda cerrados a incutirem-lhe uma energia de que já não precisava, prosseguiu no seu caminho.
Sem querer cair em falso saudosismo, como era bom nesse tempo poder-se circular com segurança a qualquer hora e onde quer que fosse e como me foi bom fazer esta viagem a um passado que não foi rigorosamente meu, mas de que ainda pululam resquícios na minha lembrança.

Antonius



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