POEMA DO HOMEM SEM RUMO

Data 04/03/2010 08:52:10 | Tópico: Poemas

para marcia oliveira

sou um homem do século passado
peço-te que não repares meus modos
não sei se sou bom ou ruim
mas evito olhar-me no espelho
não me conheço sem a barba
sou bicho do mato
& da rua também
tenho no entanto as mãos leves
prontas para os adeuses
vivo de despedidas
deves saber que já nasci triste
mas conheço o vício de sorrir
por isso sorrio por qualquer coisa

sou um homem do século passado
menino que depressa envelheceu
tenho uma tatuagem no braço
sou míope
tenho medo de atravessar a rua
mas ignoro a morte
porque minha morte é só minha
único bem que possuo - minha morte
a casa onde moro fica do outro lado do rio
prefiro os caminhos errados
talvez por isso é que nunca me canso
talvez por isso é que vivo partindo

o amor é um mal necessário
por isso vivo doente
um homem do século passado requer cuidados
às vezes me assusto comigo mesmo
eu sou a minha morte
e disso sei desde o berço
tenho paixões doentias
minha mãe dizia que pariu um louco
meu pai - cúmplice - nunca disse nada
comecei a morrer no dia 6 de agosto de 1956
uma quarta feira às nove e quinze da manhã
não sei se tive votos de boas vindas
mas enfim vim ao mundo

sou um homem do século passado
qualquer galanteio me encanta
mulher me fascina
mesmo sendo mulher da rua
a rua me fascina
o bar me fascina
tenho uma coleção rara de amigos mortos
hoje para mim os dias são sempre iguais

sou um homem do século passado
sendo eu assim
peço-te que me entendas
se vivo perdendo os óculos
é só porque gosto de fingir-me de cego
vivo na contramão
contando as cinzas dos meus dias

sou um homem do século passado
se amanhã eu te beijar a boca
peço-te para não reparar

___________________

júlio


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