LEMBRANDO MIGUEL TORGA

Data 05/03/2010 17:06:22 | Tópico: Crónicas

p/rosafogo, com carinho.

Leio o seu comentário, Natália, e fico comovido. Ele me devolve à meninice que perdi um dia, quando, aos dezesseis anos, conheci uma menina na avenida 9 de julho. Era linda. Perguntou-me se eu queria. Mas eu não sabia, juro, o que era este querer. Eu era interno num mosteiro beneditino, fadado a ser padre.
Pois bem, ela me levou a um terreno baldio ao lado e ergueu a saia. E eu nunca mais quis ser padre. Mulher é coisa do bem.
Você me fala de Torga com tanto carinho, Natália, que me comove. Meu avô era, como lhe disse na resposta ao seu comentário, um homem rude, que veio de Portugal, país do qual muito me orgulho, e tenho também como minha pátria - lembro-me que num certo abril, mesmo tão longe, eu chorei -, tentar a vida por aqui como tantos. Um dia, em casa dele, li entre os poemas de Miguel Torga, a Balada da Morgue. Eu tinha só doze anos e fiquei sem dormir de medo, tamanha a maneira como ele descrevia um cadáver. Bem mais tarde, vim a saber que Torga era médico e andou pelo Brasil na meninice. Torga era um pseudônimo.
Conheci, já bem adulto, um dono de restaurante, o bom Siqueira, português, meu amigo, que me contou ter servido Torga num café em Coimbra, onde hoje há uma rua com o nome dele - como se nome de rua tivesse alguma importância. Contou-me que Torga era um homem triste. Escrevia em guardanapos de papel. Vez em quando uma mulher vinha encontrá-lo. O dono do café pedia ao meu amigo que não o perturbasse. É só o que sei de Torga, além das consultas de graça que dava aos pobres. E da repressão na ditadura em Portugal, como aqui também tivémos - e foi cruel, com presos, mortos e desaparecidos até hoje.
Mas passei a escrever bem tarde: é fato que escrevi o primeiro poema aos treze anos, quando vi, por acaso, meu avô português errar ao atravessar a rua, perto de onde morávamos, morrer debaixo das rodas de um caminhão. Foi meu primeiro contato com a morte.E daí fiz meu primeiro poema, que minha mãe, morta não faz muito, guardava entre seus papéis. Não me lembro do primeiro verso deste poema, mas foi minha primeira dor. Outras viriam depois.
Até aos vinte anos, nunca quis escrever. Até que, por falta de opção, o jornalismo entrou na minha vida. Queria mesmo era jogar futebol. Mas a poesia foi a única mulher que não resisti.
Conheci poetas, Vinícius foi meu amigo, Drummond me faltou coragem pra falar direto. Tive vergonha: sou muito tímido, embora não pareça. O que eu quero dizer a você, Natália, é que Torga sempre foi e será presente em minha vida. Não tenho a genialidade dele - quem sou eu? -, mas tenho um louco amor pelo socialismo. Como este Miguel, que não era Miguel, mas Adolfo, tinha também.
carinho,

j.


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