DOM HELDER, O DOM DE DEUS

Data 13/03/2010 23:41:00 | Tópico: Crónicas

Vi dom Helder Câmara, arcebispo do Recife e de Olinda, uma única vez. Foi quando veio a São Paulo, por conta de uma celebração ecumênica, feita na Catedral da Sé, em 1975, por causa do assassinato, nos porões da ditadura, do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, morto por espancamento pela polícia política. E levando como causa mortis um atestado mentiroso, assinado por um legista canalha, Harry Shibata, que atestou um suicídio que não houve. A foto do companheiro Vlado morto, com o cinto amarrado ao pescoço, para justificar um falso enforcamento, está até hoje no Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, no auditório que leva o seu nome. E foi espalhada ao mundo inteiro. Burros!, nenhum preso entra com cadarço de sapatos ou cinto numa cela, exatamente para evitar suicídio. Os idiotas esqueceram desse detalhe.
A celebração ecumênica foi organizada e presidida pelo arcebispo de São Paulo, na época, dom Paulo Evaristo, cardeal Arns, irmão da médica e humanista Zilda Arns, que há pouco morreu no Haiti, vítima do terremoto que chocou o mundo, onde foi prestar sua solidariedade, principalmente às crianças: a doutora Zilda era pediatra. Ele, dom Paulo, desconfiou que a morte do Vlado não se tratava de suicídio, mas de espancamento. O que foi provado depois pelos depoimentos corajosos de dois jornalistas, que estavam presos na cela ao lado - Duque Estrada - parente direto do autor da letra do Hino Nacional Brasileiro - e Paulo Marckun, que ouviram os gritos da sessão de pancadaria, vinda da cela ao lado, onde depositaram o Vlado.
Subiram ao altar da Catedral da Sé de São Paulo, dom Paulo, um pastor metodista, Jaime Wright, e o rabino, Henry Sobel, numa cerimônia nunca vista e sem precedentes na história das religiões do mundo inteiro.Nunca, que eu me lembre,participaram de um mesmo ofício religioso, um padre católico, um pastor evangélico e um rabino no mesmo altar.Isto veio a se tornar comum bem depois. Mas dom Paulo foi o primeiro a fazer, transgredindo as leis da Santa Sé.
Dom Helder, sentado ao fundo do altar, preferiu não aparecer.Já estava velho e com a saúde debilitada. Mas viajou quilômetros - a distância do Recife a São Paulo é grande e ele ainda veio de ônibus. Era um homem de pouca estatura e franzino. Mas com uma coragem de leão. Só ao final do ato, com seu carregado sotaque nordestino, pediu calma a nós que estávamos na igreja, cercada pela polícia. Que não revidássemos às provocações. E que saíssemos em grupos, de preferência em casais, para que os homens protegessem as meninas.(Dom Paulo, por ser criado cardeal - o termo correto é criado e não ordenado, porque padre ele já era, portanto ordenado -, embora visado pela ditadura, tinha garantias de chefe de estado e com ele ninguém mexia.E nem podia: criariam um escândalo diplomático com o Vaticano.)
Quando saímos, a polícia com cavalos e mais a tropa de choque nos agrediram. Não respeitaram as mulheres. Atiraram bombas. Deram tiros para cima.Jogaram cães em cima da gente. Os religiosos, inclusive os frades dominicanos, que saíram conosco para nos dar proteção, alguns com o hábito branco e o escapulário negro da ordem, apanharam.Entre eles, estava o escritor e frade de São Domingos, Frei Betto, nosso Betto.
Dom Paulo, que já era cardeal, e dom Helder saíram conosco também. Dispensaram o carro oficial da Cúria Metropolitana.
Mais tarde, eu soube que havia uma trama para matar Dom Helder. Foi planejada por João Paulo Burnnier, um brigadeiro louco da Aeronáutica, que mandou explodir o Rio-Centro, em meio a um show onde participava Chico Buarque e havia uma plateia formada por jovens simpatizantes do socialismo ou da democracia. A desgraça não foi maior porque um oficial da Aeronáutica, capitão Sérgio, teve a coragem de denunciar publicamente aquilo que queriam envolvê-lo. O sadismo de Burnnier ia mais longe: dom Helder seria sequestrado e atirado ao mar com outros presos políticos. Não fizeram isto com ele porque era conhecido no mundo inteiro. E tinha prestígio com o papa Paulo VI, homem de bem, no Vaticano. Se o tocassem, seria um escândalo mundial. Mas, por vingança, mataram o padre Henrique, auxiliar dele, jovem e recém-ordenado. Mataram o padre Henrique por espancamento. E ainda o deixaram amarrado numa árvore.
Palavras de dom Hélder, que não admitia que o chamassem de dom, mas de Hélder apenas: "Uma andorinha só não faz verão, mas o anuncia." Ou ainda: "Não é aos pobres que cabe partilhar minha esperança: antes, é a mim que cabe partilhar a deles. Aprendi muito com aqueles a quem chamam pobres e que, no entanto, são ricos do Espírito do Senhor."
Foi, no Brasil, um dos últimos bispos, chamados "vermelhos".

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júlio
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