De Angola com amor...

Data 14/03/2010 16:49:14 | Tópico: Crónicas


O Serafim é um rapaz negro, alto, lábios grossos, cabelo rapado, corpo sarado como é apanágio da raça orgulhosa a que pertence, trabalha como barman num bar da Ilha de Luanda, é pobre como são todos os barmans em Angola, é pobre como é 90% da população angolana, é pobre como é toda a classe operária de Angola, é pobre como é toda a gente que não recebe favores do estado em negócios obscuros, é pobre como é toda a gente que não tem conexões nas elites militares e politicas, é pobre quanto o se pode ser num país onde não se distinguem as realidades politicas e militares. É pobre porque tal como os restantes 90% não pertence a essas elites e como não há classe média, ao Serafim só lhe resta ser pobre.
E eu? Eu sou pobre também porque não consigo distinguir a minha riqueza moral e educacional da miséria em que o Serafim vive, e como gosto de beber uns copos ao balcão e o Serafim gosta de conversar eu fico ali ébrio e etilizado a ouvi-lo com os primeiros raios de sol a despontar por detrás da cidade suja dando cor ao mar mas não ao Serafim que fala das dificuldades que passa para estudar, de como teve que cancelar a sua matricula na universidade porque o dinheiro que ganha nem para a propina dá e depois ainda tem a mãe e os irmãos cuja responsabilidade assumiu após a morte do pai às portas de uma clínica propriedade da filha do presidente, onde para se ser consultado na urgência é preciso uma caução de uns milhares de dólares que o Serafim não tinha. Nesse entretém o Serafim conta-me que as multidões que dormem às portas dos hospitais não são doentes como eu pensava, são familiares de doentes que estão ali para quando é preciso pagar uma seringa, uma gaze um comprimido eles poderem acudir não se dando conta que assim só estão a prolongar o sofrimento dos entes, porque normalmente acaba por faltar algo o qual eles não têm como pagar. Falou-me da brutalidade policial, onde se mata por muito pouco e com toda a impunidade, onde as torturas atingem extremos e nada é investigado. Fala-me de um país à deriva numa enxurrada de dólares que saem e não voltam. País que se quer afirmar como uma potência africana mas que se afunda em manigâncias e pouca lisura. Um país onde a classe política não tem vergonha de ter contas offshore para onde voaram as divisas que tanta falta fazem ao povo desesperado, perdido nos trânsitos fumegantes de carros topo de gama na tentativa de vender uma água ou um telemóvel “made in china”.
Acendo mais um cigarro e encomendo mais um copo, vou brindar à madrugada que clareia, de consciência pesada deixo uma gorjeta generosa, mas não salvo a vida do Serafim nem nenhuma outra, é a lágrima de crocodilo que me cai até assentar a cabeça na almofada e fazer por esquecer que é domingo mas toda uma cidade acorda com os mesmos instintos de um dia de trabalho, sobreviver.




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