O filme

Data 15/03/2010 13:58:20 | Tópico: Crónicas

O filme estava bom.
os actores a fazerem amor e eu a dar à manivela. pelo menos isso. também gosto de filmes com muita pancadaria.
isso faz-me forte e pensar que não sou o único a apanhar.
desde que a helena se foi que tenho ido assistir a filmes porno. a minha mente necessita de uma boa gramagem de depravações. fá-la correr mais depressa e sinto-me um poço de desejos.
pena é que a da fila da frente, com os seus cabelos longos, me tape um pouco as vistas. o gajo que está com ela deve-lhe ter o dedo lá dentro, pela forma como se mexe, aposto que sim. são sessenta minutos de sexo sem tirar fora. eu próprio me senti cansado e não era nada comigo. vim embora quase no final. e prometi a mim mesmo deixar-me destas merdas. a partir de hoje vou viver saudável, mente sã, corpo a regenar, e se possível arranjar uma tipa que seja certinha e que tenha o gosto que eu tenho por moedas antigas.

já disse, em último caso viro para o budismo e faço uma limpeza carnal bem a fundo. o wisky está a dar cabo de mim. a biópsia o dirá.
as madrugadas já não nem acendem um único desejo. fico em frente ao computador sem conseguir escrever um corno.
há dias assim. levanto o cu da cadeira e saio à rua. os autocarros vão cheios e está bom para gamar umas carteiras, tenho essa vontade mas falta-me vocação. tenho cinco euros no bolso e espero que renda uma boa bebedeira. o que se torna um castigo é que as mulheres daqui só aceitam falar comigo se lhes pagar um copo. e o problema é que elas só gostam do bom e do caro. a solução passa em me dedicar à pesca.

e assim foi. investi em dois anzóis, vinte metros de poleiro, cacei umas moscas, passei pelo canavial de um amigo e pedi-lhe uma cana jeitosa. no rio, o açude corria com uma certa violência, as lampreias deviam anda por ali, a desovar. com sorte e tal, arrancaria das águas dois almoços e três jantares, a minha experiência de outros anos assim o diz. uma hora no combate aos peixes e nada, nem lampreia nem truta nem tainhas nem a puta que o pariu!, o anzol só amarrava em lixo doméstico e de vez em quando umas camisas de vénus. o meu azar notava-se a milhas.

pensei em desistir, mas como sou chato como um chato, resolvi ficar, até que a sorte fizesse a sua justiça. quase amanhecendo, a minha barriga com um desassossego de criar zumbidos lá dentro, as minhas costas a perder o porte atlético e a ficarem curvas, tão curvadas que mais uns cêntimetros eu seria capaz de fazer um auto-broche, um peixe saltou-me para o colo. achei isto uma brincadeira de mau gosto, porque, normalmente, tudo o que me cai no colo, eu como.

mas, a compaixão fez de mim um ser porreiro. e levei-o para casa, meti-o num aquárizito e passei a dedicar o meu tempo ao peixe.
tornámo-nos amigos, confidentes, até. o peixe foi crescendo e tive de o mudar para uma bacia das grandes. eu não sei a que espécie pertence o peixe, pois eu de peixes só percebo é de os comer, nada mais. com o tempo, a miséria a apertar, o aspecto delicioso do peixe, a dar-me vontades de o cozinhar era cada vez maior.

por duas vezes coloquei-o sobre o tacho mas faltou-me coragem para acender o lume. apesar da fome, a minha compaixão era quase divina. alguém enviara aquele peixe para o meu colo por motivos bem fortes. eu nunca quis ver deus pelas costas, por isso trincava armários para matar a fome. e o peixe tão gordinho... tive de ser forte e olhar para o animal apenas com amizade.

e foi o que foi, brincava com ele, às vezes ele vinha ter bem pertinho da minha boca mas eu não tinha aqueles pensamentos de outrora. o meu espírito estava limpo como um caneco de vidro depois de ter ido à máquina de lavar loiça. a minha fome predadora transformou-se em palavras de renovação, palavras de amigo, inclusive, muitos amigos por estranharem esta minha nova forma de ser, pensaram que estava dando em bicha.

expliquei-lhes que foi uma luz. eles não entenderam e tive de explicar por gestos. logo aqui dispenso palavras. eles lá entenderam que deus aponta o dedo a uma ovelha e que depois temos a obrigação de o seguir. mais ou menos isto. eles riram. insistiram a perguntar se eu não voltei às drogas. eu fiz um ó com a boca e desandei para outros caminhos. a carlota, que agora não valhe um pentelho, quis meter treta comigo mas eu mandei-a de volta ao mar, como quem diz, ir chupar na quinta pata de um cavalo.

o problema é que não existe remédio para a incompreensão. mais duas voltas ao quarteirão e regressei a casa. fui para dar o boa-noite ao peixe e vi que ele estava desmaiado, melhor dizendo, morto. chorei. não vou descrever o choro porque os choros não se descrevem, o choro é tão nosso que, se somos apanhados em flagrante lágrimas, ainda escorre mais. três comprimidos com um gole de cerveja para dormir foi a melhor forma de resistir à noite e chegar e avistar a manhã pela manhãzinha.

vim à varanda cumprimentar o sol e dar um grito daqueles capazes de se ouvir dentro da imaginação de todos os homens. um autocarro cheio de gente parou. pessoas começaram a sair e outras a entrar. o motorista fez-me um gesto. por eu não ligar, ele repetiu-o. fui ter com ele. sem responder a qualquer formulário entrei no autocarro e levou-me para junto de um rio. nesse rio havia um único peixe que estava preso numa rocha. entrei dentro de água para o salvar e salvei-o. nunca mais o vi. nem peixe nem motorista.
coisas esquisitas aconteceram por ali que não sei traduzir. súbitamente uma nuvem negra deu lugar a um sol de praia entre as nove e as onze da manhã.
de quaisquer das formas deixei-me estar por ali, à cata de algum sossego, pois nessa hora tinha a sensação que ressucitara de uma morte por acontecer.

a vida, sei lá que caralho é a vida.
adormeci.
e tão depressa acordei numa sala de cinema, vazia, só a luz branca do projector na tela.
saí com uma ânsia entre os ossos. cá fora comentavam o filme sobre o amor incondicional de um homem e de um peixe, e o borburinho aumentou assim que me viram. e olhavam-me, e olhavam-me, que tanto que me olhavam que me apeteceu mandá-los para aquele sítio.

ignorar é sempre bom e foi o que eu fiz. desandei dali. corri várias ruas à procura de nada, os sinos entravam-me por um ouvido e saiam pelo outro, até que passei por uma montra de vestidos de noiva onde só havia dois manequins: um era um peixe com longas escamas brilhantes e o outro ia jurar que era parecido comigo.

caguei no assunto e rumei em direção a casa, à minha cama cheia de vestígios de sexo e borralhas de cigarro. farto de coincidências e interrogações, farto dos dias de pagamentos, farto dos dias sem criatividade, esgalhei uma e adormeci, profundamente ateu.



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