Não acordem os pássaros II

Data 27/03/2010 18:32:16 | Tópico: Contos

O tempo alterou rapidamente, forçando-me a um recolhimento indesejado.
Torrencial, a princípio, a chuva abrandou e cedeu espaço a uma leve e bem-vinda garoa.
Esta desabara no exato instante em que adentrava a sacada, carregando a rede, onde, há pouco, embalado em leve dormência, vasculhava episódios de uma vida repleta de belas passagens.
Assim têm decorrido os meus dias: prolongados, intermináveis. Nem mesmo os passeios pelo quintal enorme, repleto de ervas que, a cada dia, se multiplicam, me são possíveis.
As pernas cambaleiam, dando origem a passos indecisos e sem firmeza. Não distingo sons. Desconexas, chegam-me as vibrações captadas por um subconsciente que, adormecido em recordações, cavalga outros tempos.
Felisberto dorme no sofá. Os olhos, por vezes se abrem, mas, incapazes de assim se manterem, voltam ao estágio inicial.
Sempre o hábito de cognome humano aos animais de estimação.
Quando conheci Madalena, esta, no início, estranhara este insólito proceder. Parecia-lhe um tanto quanto sem sentido. Mudara, com o decorrer dos dias, de opinião, chegando a usar o meu nome para denominar a sua última aquisição: um cão sem raça e maltratado que encontrara vagando pela cidade.
Outrossim, dedicara-lhe uma homenagem: uma linda gata siamesa de pelos brilhantes que luziam ao sol.
Geraldo, Bruna, Frederico e tantos outros...
Todos se foram.
Hoje, Felisberto e eu a compartilhar deste espaço enorme.
Por vezes, sinto mais a falta destes seres, do que dos familiares.
Assaltam-me remorsos, nessas ocasiões, pois tal procedimento denota uma distância em relação aos mesmos.
Consola-me, no entanto, a certeza de que estão bem, cada qual em seu mundo. Pouco aparecem, ainda mais agora...


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Quando da morte de Francisco, atropelado pelo veículo do gás, convivi com dias de insegurança e medo. Grande fora o impacto.
Ainda lá permanecem, ao pé da goiabeira, os restos mortais que se fazem lembrar, através da cruz alusiva ao fatídico dia. Tivera, por parte de Madalena, um enterro à altura.
Já à época, o temor pela morte me espreitava, pois, pareceu-me ser aquele o meu próprio funeral.
Madalena, entretanto, resolvera partir antes.
Mas estas lembranças não me devem perturbar. Não agora, em que, finalmente, uma paz espiritual paira no ar, além do arco-íris que se delineia no céu.
Felisberto, neste momento, me observa, como a fitar um tabuleiro onde pedras de um intrincado jogo permanecem inertes.
Não serei capaz de fazer-lhe carinho, faltam-me forças e disposição para tal.
Quantos dias, quantas horas..., até que os últimos fios de uma vida que, teimosamente, se prolonga, sejam cortados.
Não careço de rezas, pois se não indigno, merecedor das mesmas não me acho. Se, por completo não me abstive, não me aprofundei nos pormenores de algo mais crível.
Com a chuva os meninos não vieram. Certamente navegam, pelas águas da enxurrada, seus barcos que exalam vida.
O odor de terra molhada se espalha pelo ar, onde pássaros adormecidos alçam voos imaginários.
Consola-me a certeza de um sono profundo e sem volta...




Do livro "Não acordem os pássaros" - 1994



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