Uma peça de museu

Data 01/04/2010 19:16:47 | Tópico: Crónicas


O Seringa não sabe porque se chama assim, sabe que se chama, vive num barraco de chapa a que chama casa construído no terreno do patrão, não tem vizinhos, o terreno tem cerca de 50 hectares de terra vermelha, capim e um imbondeiro que se entorta a olhos vistos acusando longa idade, e no meio da terra está lá orgulhosa a “casa” do Seringa, em chapa de zinco e juncada de utensílios vários a toda a volta que o espaço ao contrário do calor e dos mosquitos é coisa que não abunda no seu lar. O Seringa arranjou um sofá velho e roto e com alguma paciência remendou-o e fez dele o seu trono, onde ao fim da tarde se senta e avista a nesga de mar que vislumbra no horizonte para lá do Museu da Escravatura e do transito, quando o astro-rei se ajoelha no horizonte e presta vassalagem ao seu reinado, dando lugar à lua que lhe vem velar a hora de ardor que o espera com mãe Lisa, que lavadas as latas que lhe servem de panelas, o chama em voz melíflua para o ansiado enlace.
O Seringa só não gosta quando o mandam ao centro da cidade, tem que atravessar a Samba, subir ao Prenda e descer para a Maianga montado na sua ginga que o faz comer pó, suar em bica debaixo do sol impiedoso que o castiga pela ausência do seu trono. À vinda vem pela Multiperfil, atravessa o Morro Bento e vai sair à Camama, sempre com gente em volta que lhe aturde os sentidos, e o Seringa sente o peso da solidão debaixo da bastonada de um polícia que o castiga pela manobra incauta.
- Preto também ama, chefia.- Diz-me o Seringa para vincar o seu sentir longe do seu reino e da sua Lisa.
Eu fico a pensar que o Seringa ainda não deu o passo para lá do Museu da Escravatura, a vista alcança mas ele ainda não passou para o lado de lá.




Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=126518