todos os números.

Data 03/04/2010 21:03:56 | Tópico: Textos









o meu avô era um homem magro, os olhos enterrados numa face oval, a boca rudimentar, lábios maciços, pele estranhamente branca. as mãos do meu avô eram macias, os dedos, sempre de unhas cortadas rentes, tinham as peles enrugadas, dedos magros e compridos, sempre despertos. lembro-me da última vez que o abracei, puxei-lhe o corpo contra o meu, boca a bater-lhe no ouvido,cabeça pousada no ombro, chorei, ainda não sabia que ele havia de morrer essa noite, mas chorei como quem despe silêncios e de silêncios ele sabia, que os paria todos os dias, de manhã à noite, sentado no escano, à espera. herdei do meu avô estes olhos, esta ânsia de estar dentro, o cheiro a deserto. havias de ter gostado de o conhecer -vestido com o terno preto, camisa cinza, sem gravata, cabelo grisalho despenteado do vento, sapatos de lona, livro debaixo do braço, mão direita no bolso, a esquerda a segurar a trela ao tempo. morreu cansado e só, junto à cómoda, as ceroulas brancas, o sangue na boca. o meu avô. havias de ter gostado de o conhecer - sentado na varanda, cassetes da amália, braços no colo, aos pés um perdigueiro velho, na boca fechado um mundo. nunca me falou de amor o meu avô, sabia dele pelo corpo da minha avó, "o resto são lérias", disse-me ele um dia à tarde depois de me ter contado a revolução e como sobreviveu sete dias com dois trigos e meia garrafa de jeropiga. hoje gostava de te falar de amor como quem fala do meu avô, ou do corpo da minha avó, ou das suas ceroulas brancas, ou do sangue na boca; dizer-te que amor é este onde, longe ou perto, estamos, que o coração é a única casa que temos.








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