HOMENAGEM A FERREIRA GULLAR
Data 13/04/2010 11:01:36 | Tópico: Sonetos
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Traduzir-se
Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira.
Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta.
Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem.
Traduzir uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte — será arte?
FERREIRA GULLAR
1
“será arte?” A sorte Do corte Que parte Reparte Recorte Deporte Descarte. Assim Sem fim A história Começa Remessa Inglória...
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“de vida ou morte” Do canto ou luz Já reproduz Qualquer suporte Sem ter mais norte A vida é cruz E se me opus Negando aporte O beijo, a faca Navalha estaca E tudo é nada Vagando sem Seguindo aquém Cada lufada...
3
“que é uma questão” Do quanto pude Sem juventude Matar verão Noutro senão Minha alma açude Por vezes rude Só negação Negando o sol Sonega a vida Se girassol Se cata-vento Por um momento A despedida...
4
“Traduzir uma parte na outra parte” Do que tanto seria se não fosse O corte muitas vezes agridoce Do quanto pude ao menos um descarte Sentir o descaminho convergindo Em outro descaminho segue ao porto E tanto quanto pude semimorto Viver ou mesmo crer no quando infindo Sentindo ou não sentindo, vez em quando O quadro se aproxima do vazio Decerto a cada passo se eu me guio Eu posso ver meu mundo desabando Ou mesmo reformando a velha casa Acendo enquanto atento, gelo ou brasa.
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“outra parte, linguagem” Outras vezes pudesse Ou nem tanto tivesse Ao fundo esta paisagem E nela nova aragem Enquanto assim se tece O preço diz da prece A sorte da viagem O canto do não ser O ser sem ter encanto Diversa convergência No tanto em penitência Ou quase poderia Assisto ao meu anseio E dele só receio A sorte mais sombria...
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“Uma parte de mim é só vertigem” Mergulho em precipício, vago tombo E quando qualquer mundo ainda arrombo Não levo do passado nem fuligem, E tanto se pudesse noutro tanto Viver em carrosséis dores e risos Talvez fossem menores prejuízos Quem sabe na verdade ou nada canto, E tento disfarçar em voz macia Ou mesmo na calada se inda resta A face do não ser torpe e funesta Do quanto tantas vezes poderia, E assim dicotomia em tons diversos O mundo cabe inteiro nos meus versos...
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“outra parte se sabe de repente” Do quanto não podia, mas atento E se prossigo mesmo contra o vento Não deixo que este nada se apresente Apascentando o quando se pressente Do verso feito em dor e sofrimento Ou quando noutro verso busco alento O quarto se tornando florescente, Alheio ao que pudesse num instante Sou vago enquanto vago pelo não E tendo esta real transformação Mergulho dentre em mim criando abismo E sangro até poder já me fartar Aonde não pudesse te encontrar Surpreso com mim mesmo, ainda cismo.
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“Uma parte de mim é permanente” E nela me transporto em passo firme Por tanto quanto ainda se confirme Deveras nada além mais se pressente E quando da verdade já se ausente O mundo que talvez a sorte firme, Sem nada do contrário, reafirme E assim sigo constante e sem repente, Assíduo companheiro do mim mesmo Em poucas variantes me ensimesmo E sem saber do quando poderia Exato como fosse bem mais prático O rosto de um exausto matemático Expressa o que jamais diz fantasia...
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“outra parte se espanta” Com esse meu retrato Por vezes me maltrato Enquanto em fúria tanta Degenerando encanta Regenerando mato E tanto quanto fato O pouco se quebranta A sorte desairosa A rosa por consorte A morte a cada instante Instante noutro quase E sigo cada fase Num ritmo galopante.
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“Uma parte de mim almoça e janta:” Enquanto se enfastia já burguesa Sentada ao esperar a sobremesa A fome se expressando em força tanta O quanto do vazio dita a manta A vida sem sequer saber surpresa Do quanto poderia não sei presa Do quanto não se pode e se adianta. Pacífico deveras cidadão No nada vejo apenas negação Prevejo dia sim, começo e meio, Sem nada que inda possa transformar O sol redime o frágil do luar, Mas tanto se divirjo, enfim receio.
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“outra parte delira” Navega noutros mares E busca por luares Bebendo assim a lira E quanto mais se atira Enfrenta os procurares E quanto diz altares Expressa falhas miras Vagando em tempestade Porquanto quer e brade Insossegado ser Se não posso voar Aonde me encontrar Se tudo posso ver?
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“Uma parte de mim pesa, pondera” E quando se pensando mais audaz Deveras o caminho se desfaz Não vejo numa esquina nova fera E tanto se pudesse em primavera, Porém se há flor ou não, já tanto faz O passo nunca foi feliz, mordaz, Eu sei de onde provenho e o que me espera, Assisto ao mesmo fato, este espetáculo A vida não precisa de um oráculo Repito a velha estrada em ar comum, O quanto poderia ser além No todo feito em nada que contém Ao fim dos sonhos, vejo, então, nenhum.
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“outra parte estranheza e solidão” Quando ensimesmado nada falo E quanto mais atroz a dor me calo Aonde não pudesse diversão Não sei se tento rumo ou direção Verdade não conheço algum estalo, E sinto quando em ânsia desabalo O tempo morre em tanta inanição, Vencido desde sempre quem me dera Saber do quanto pude em primavera Se nada no canteiro dita flores, E quando me percebo em noite fria, Não tento e nem concebo a poesia Se há tempos já morreram meus albores.
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“Uma parte de mim é multidão” A festa o riso o gozo o regozijo E quanto mais eu quero e mais exijo O mundo se mostrando ebulição Expresso com furor algum vulcão Altares dos prazeres eu erijo E peço muito além do quanto aflijo A fúria se tornando esta expressão, Risonho camarada, companheiro O tanto deste ser é verdadeiro? Respostas não conheço e nem pretendo Assim assisto ao muito e mesmo pouco Se eu posso ou se reponho me treslouco, O tanto que restou serve de adendo.
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“outra parte é ninguém: fundo sem fundo” Vagando dentro em mim sou solitário Aonde poderia solidário Nas ânsias do vazio me aprofundo, Apenas traduzindo o quanto em mundo Vencido pelo sol desnecessário Trancado com segredos num armário Reflito o que não sou nem poderia Se tanto quanto calo a fantasia Gerando o que não pude perceber Assim ao me mostrar bem mais desnudo Enquanto não me venço e não me iludo Navego pelas ânsias do meu ser.
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“Uma parte de mim é todo mundo” E desta multidão que aqui carrego Porquanto muitas vezes sigo cego E tanto quanto posso vagabundo Escudo-me no pouco que aprofundo Não bebo sequer gota em que navego, E quando mais atroz, já me renego, Seguindo qualquer rota, giramundo. Apátrida caminho, vez por tanta E quanto se talvez ainda canta A fonte inesgotável sim ou não, Aonde não se vê qualquer retrato, Aonde não se vê além do fato Ali talvez encontre a tradução...
MARCOS LOURES
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