
O Encontrão
Data 24/04/2010 16:41:37 | Tópico: Poemas -> Humor
| Por mais estranho, incrível, que pareça a próxima história que vos trago é caso curioso, do carago, que nem sequer vos passa pela cabeça.
Um cego e o seu amigo Edmundo, que nunca fora muito de ir à escola, viviam de biscates, de esmola, perdidos nas agruras deste mundo.
Humildes, mão aberta à multidão, andavam pelas ruas de Lisboa, assim como quem canta ou apregoa: Dê cá uma moeda, um tostão.
A vida era um infame purgatório, um forte pesadelo, um berbicacho. Passavam, rua abaixo rua acima, o dia no difícil peditório.
Que raio de destino assim maldito, pois tudo o que ganhavam por jornada foi sempre muito pouco quase nada, mal dava para a sopa e o copito.
Queixava-se o ceguinho ao Edmundo: Assim não vamos lá, meu caro amigo. Não vou nunca deixar de ser mendigo e tu não passarás dum vagabundo.
Responde o Edmundo pensativo: Eu tenho uma ideia promissora, um pouco arriscada, sim senhora, mas tem também um lado positivo.
Iríamos ganhar muito dinheiro, sucesso, muita fama e mulheres. É fácil, para tal basta quereres tornar-te num intrépido toureiro.
Toureiro!?! Perguntou-lhe o ceguinho, incrédulo, sem querer acreditar. Sou cego, como podes tu pensar em tão grande disparate. Maluquinho!
A sério! retorquiu o Edmundo. Tu sabes que eu sou mesmo teu amigo, escuta até ao fim o que eu te digo e diz-me o que achas lá no fundo.
Tu entras na arena normalmente, eu sigo logo atrás e sempre atento ao mínimo barulho ou movimento do touro que nos olha lá à frente.
Depois se ele vier pela direita, eu dou-te um encontrão para a esquerda. No caso de ele vir pela esquerda, eu dou-te um encontrão para a direita.
O cego magicou nesta proposta tentando imaginar-se na arena. Por certo valeria bem a pena e logo deu um sim como resposta.
Chegou enfim o dia da estreia do mais novo toureiro nacional, um caso nunca visto, irracional e no Campo Pequeno a casa cheia.
Entrou meio a tremer, tão inseguro, o cego no seu traje reluzente. Os braços esticados para a frente abraçam o vazio, o escuro.
Seguia o Edmundo atrás do cego, vestido também ele a rigor, suava sob o sol abrasador, a mente num total desassossego.
Seriam mais de mil e muitas almas de pé em aplauso nas bancadas, surpresas, direi mesmo admiradas, brindavam o ceguinho com as palmas.
Aos poucos o barulho abrandou, calaram-se as gargantas do povinho. No centro o Edmundo e o ceguinho quando o altifalante anunciou: O touro que começa esta tourada chegou vindo da Casa dos Camilos e pesa uns seiscentos e dez quilos. Um bom representante da manada.
Seiscentos e dez quilos!?! C’um catano! pensou o Edmundo com surpresa. Na mais certa atitude de defesa fugiu, deixando o cego no engano.
Sem nada suspeitar, assim sozinho, avança o toureiro, pela praça, por certo ao encontro da desgraça talvez da própria morte, coitadinho.
O touro, lá ao fundo, resfolega, esfrega os seus cascos na poeira. E sem se aperceber da ratoeira avança o ceguinho para a refrega.
Abana a muleta avermelhada chamando pelo toiro, esganiçado: Hei toiro! Oh! Cabresto desgraçado. Avança às escuras sem ver nada.
O touro já arrancou como uma seta, parece um comboio TGV, atira-se ao toureiro que não vê, seguindo a direito, em linha recta.
O cego até voou com a pancada, caindo lá ao longe amarfanhado. Partiu quatro costelas e, coitado, ficou com uma perna perfurada.
Correram os toureiros em redor tentando levantá-lo com cuidado. Um médico à pressa foi chamado, chegou também ao pé o desertor.
Ao ver o pobre cego moribundo gritavam as pessoas por ajuda: Alguém que o socorra, o acuda. Chorava arrependido o Edmundo.
Depois no hospital foi operado, durante duas horas, de emergência. Devido ao alto grau de violência ficou por mais dois meses internado.
À sua cabeceira, o Edmundo passou dias e dias de tristeza. Ninguém sabia ainda com certeza o fim daquele coma tão profundo.
Um dia o ceguinho acordou sentiu o Edmundo ao seu lado já todo sorridente, emocionado, pensando: o pesadelo acabou.
Então, meu caro amigo, estás melhor? pergunta o Edmundo envergonhado. Sabia que, apesar de acordado, o cego deveria sentir dor.
Tentando levantar-se, o ceguinho virou-se para o amigo a espumar, o ódio estampado no falar e disse em voz fraca, bem baixinho:
Estou desiludido e é contigo! Caralho, francamente ó Edmundo! Nunca foi em qualquer lugar do mundo encontrão que se desse a um amigo.
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