Mar cinzento

Data 24/05/2010 22:21:47 | Tópico: Crónicas


Recortava-se a silhueta no pontão do cais entre a bruma levantada pela fúria das ondas cujos salpicos lhe fendiam os sulcos das rugas mil vezes castigadas pela fúria do sol e do sal do mar. Impassível e imune às bátegas de azul-mar que lhe vinham beijar os pés o velho lançava o anzol do olhar no horizonte, lá onde o azul do mar era esbatido pela cinza do céu enfurecido, da mesma cor da rocha bruta onde assentava os pés, da mesma cor da pele macilenta e fustigada dando a ideia de ser mais velho do que realmente era. Corria como um sopro de mau anúncio a brisa em novelos sobre o cobertor que lhe cobria os ombros. Não se ufanava o velho das mil histórias de bravatas de pescarias longínquas, nem se lembrava das voltas do mar do norte, só pensava na traineira que se fizera ao mar aos primeiros raios de sol da madrugada onde os seus filhos embarcaram, só se lembrava do nó na garganta que sentira quando a frágil embarcação desapareceu na neblina matinal virando a popa ao sol nascente.
Habituou-se desde sempre a virar costas ao sol, que impiedoso lhe zurzia as costas na faina implacável que o mestre contabilizava na hora de repartir o arrego. Lembrou as rostos dos filhos quase tão velhos como ele ao lusco fusco da madrugada, sempre se lembra de os conhecer assim velhos, tal como ele, tal como os netos que em casa aguardam a chegada dos pais, todos velhos... Filhos de velhos que nascem velhos.




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