eu fiquei meio surtado

Data 02/06/2010 17:19:20 | Tópico: Poemas -> Surrealistas

eu fiquei meio surtado
eu fiquei meio preocupado
eu fiquei meio transtornado
tranquei-me no quarto e meu pensamento
expulsou-me como se um parto por exemplo
acontecesse no ventre do tempo
e como se um infarto me remetesse
ao templo dos fiéis mudos que sem prece
e sem pressa esperam pela aparição
de uma mão em que os anéis têm aparência
de labirintos ou vertigens da consciência
e servem aos ritos selvagens sem sentido
sob gritos e súplicas a tinir no ouvido
de quem sabe que se esqueceu de viver
e agora só lhe é dado da bomba o estampido
e do tempo a eternidade do gemido!

e este infarto ou dor que me enaltece
– embora tenha eu vivido sem reza, sem prece
que a deus agradece e que a benção merece –
transporta-me com a vela acesa ou içada
para fora da dor, para fora do quarto, para fora do amor
a navegar deitado na porta
um mar de paredes loucas
a se projetar para a aorta :
um mar de sangue e parafernálias e feras
e quadros de artistas famosos
que servem juntos de fluido às esferas
que com muito ruído pelas veias
vão desfilando seus conjuntos de matérias belas,
seus concretos, seus objetos de quarto: calçados e meias!
que vão desfilando pelo mar de paredes
dentro do corpo a instalar suas redes – ou teias!
formando labirintos que só fazem perder-me
entre paredes que se multiplicam
nas imagens, no pensamento
cujas viagens de sofrimento
desvendam-me o automartírio perverso
da História Humana que sem delírio habita a carne
de meu próprio corpo que se torna o próprio universo!

eu fiquei meio surtado e voltei a ser humano!
eu fiquei preocupado e voltei a ver o século
e voltei a ver do século os dias
e no espelho dos dias o tom sanguinário
do rosto vermelho dos anos!

eu fiquei meio surtado, eu fiquei meio preocupado!
eu fiquei meio sentado, mas levantei-me transtornado...
estava sendo picado por feras antigas
por pernilongos furiosos ou por belas raparigas
que por insetos variados eram anunciadas
como se estivessem voando
como se estivessem peladas
e me picavam e voltavam
e no meu universo de paredes
parafernálias infernais e sangue e redes enfim habitavam
e eis que por fim eu era picado por insetos
que enfim diziam-me coisas em francos dialetos
e eis que conheci verdades de um mundo imaginário
e eis que sangrando : jazia eu imundo
e era picado ao contrário
pois que meu tamanho insano
diminuiu num segundo
diminuiu a cada ano ...
não sei precisar e precisei de refrescos
pois estava eu a ter o tamanho dos insetos
que eram grandes, gigantes, gigantescos!
e que por serem seletos
eram por mim picados
mordidos e vilipendiados
e sob minha mordida: sugavam-me!
e minha substância, e minha essência...
minha ressonância, minha consciência
viajava para dentro do inseto
das feras, dos bichos, dos átomos
e meu chão virava teto pois o teto
há muito era já o meu coração
que batia forte com espasmos átonos
de lâmpadas que eram caveiras
luminosas e outras badulaqueiras...


Úmero Card'Osso


Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=135579