Numa noite destas...

Data 07/06/2010 20:57:29 | Tópico: Crónicas


Saí encoberto pela noite, virei a gola ao frio, esfreguei as mãos uma na outra na tentativa de as aquecer:
- O Sr. tem um cigarro? – Ouvi num arrastar de pronúncia imperceptível numa voz roufenha e olhei para o lado. Vestia umas calças andrajosas com um atilho a fazer de cinto que atamancava de igual forma a camisola de lã grossa por dentro das calças. A gola da camisola tinha-se alargado formando um decote onde espreitava uma camisola fina que devia ter sido branca. Contrariado por me obrigar a desapertar o casaco para chegar aos cigarros resmunguei um “sim” e lá dei com o maço, aproveitei e tirei 2 cigarros, um para mim e outro para ele
- Que diabo, um cigarro não se nega a ninguém… – disse para comigo desculpando-me pelo meu incomodo inicial. Entreguei-lhe o cigarro, e estendi-lhe o isqueiro para ele o poder acender. Deu uma trava longa que lhe atingiu os pulmões como um soco, fazendo-o tossir, uma tosse seca que lhe vinha lá de dentro e ecoava na indiferença da noite invernosa. Passou-me o isqueiro, acendi o meu cigarro e dispunha-me a encetar caminho:
- O Sr. por acaso não tem aí uma moedinha? – Atirou-me assim de chofre mais numa suplica que numa pergunta. Mirei o cabelo que lhe caía oleoso sobre os ombros, como hera no Outono, emoldurando um olhar de sol posto, triste e invernoso como a noite que já me começava a enfurecer tal a cadencia com que começava a bater os pés para contrariar o frio.
- E para que queres a moeda? Para juntares a outras até dar para um caldo? Não dou dinheiro para droga, pá. – Retorqui do alto da minha sabedoria, acolitada pela vasta experiencia que julgo ter.
- Não Senhor, era para comer qualquer coisita, ainda num botei nada ao bucho hoje. – Mexia com as mãos quando falava, umas mãos secas onde distinguia os ossos que lhe rompiam a pele e as veias maceradas ao nível do pulso, num rio triste e escuro que adivinhava lhe desaguava algures pelo cotovelo. Meti a mão ao bolso procurei algumas moedas e entreguei-lhe.
- Obrigado meu senhor, quando precisar estou sempre por aqui – prometeu em jeito de agradecimento virando-me costas e desaparecendo na noite parda, na escuridão que só ele conhecia, para lá do meu entendimento, para lá da razão. Vejo-o todos os dias em cada esquina.
- Que diabo, umas moedas não se negam a ninguém…




Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=136376