Fado em prosa ao sentir português

Data 09/06/2010 21:35:01 | Tópico: Poemas


Eu canto o povo, gosto de cantar o povo, a mulher que carrega a canasta com um olho no cliente e outro no polícia que lhe tira o peixe porque considera fuga aos impostos a venda de rua. Canto essa mulher e outras tantas que abalam de casa com a noite a morrer, cumprimentam os primeiros raios de sol na travessia do Tejo rumo a um escritório bafiento e chegam a casa já noite alta para dar de jantar aos garotos e alombar com o marido desempregado. Canto a mulher que baila na faina das vindimas em ritmo afinado pela tesoura de poda que lhe cria bolhas nas falanges, entorpece-lhe as vértebras, arriba a casa com a lua alta e ainda vai meter o dedo no cu da galinha para ver se tem ovo, antes de fazer a janta para um rebanho de filhos que ficaram em casa entregue aos cuidados dos mais velhos.
Canto o povo em cada rosto que distingo, nas rugas que o decoram, no andar quebradiço do homem que sobre o molhe carrega os fardos da estiva, no olhar resignado daquele que ouve do médico a sentença de morte de um trabalho onde os químicos lhe sufocaram os pulmões, que chiam agora mais alto que as lançadeiras dos teares naquele vaivém monótono em que construiu a sua vida. Canto o carinho do alfaiate que desenha a giz num pano-cru, corta com eficiência de tesoura finamente afiada, meticuloso porfia os bordos num chuleio fino, pica o dedo na agulha e lambe o sangue que lhe sabe a suor.
E não é um canto triste, é um fado que nasce galhofeiro nas gargantas do bolhão e se aninha sozinho e vádio na mouraria, orgulhoso é hino de um povo que lhe afina o sentir em cada dobra da guitarra que geme no coração deste povo que canto.




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