dessas pessoas.

Data 29/06/2010 09:50:40 | Tópico: Textos









dessas pessoas sobra apenas o impulso, o primeiro impacto, a primeira vista. quando as olhamos mais fundo só o vazio. a mente que mente à entrada do coração, sempre. julguei tê-las visto de outra forma, já há algum tempo que as procurava no deserto, reconheci-lhes as feições de madrugada, sentadas na margem, as caras à pesca de alguma coisa viva. não encontraram outra coisa senão morte e nem os peixes souberam contar-lhes de no fundo o rio ser comestível. trocaram as direcções, fingiram sentidos, agora não há bússola que as detenha, estão desnorteadas. o corpo pesado pela falta de lugares. dessas pessoas julguei não saber nada até que uma se chegou a mim, de madrugada, com o corpo crispado de frio, disse-me que estava à procura de um canto onde pernoitar, indiquei-lhe o meu ombro. acomodou-se e adormeceu. por incrível que parece não lhe ouvi nenhum barulho, ficou ali noite adentro, a cara tapada pelos cabelos, mãos enterradas nas costas, como um abraço que se dá deveras. quis dizer-lhe certas coisas, como se pesca coisas vivas, onde estão as coisas vivas, porque fogem as coisas vivas, mas deixei-a dormir, deixei-a ficar no meu ombro. dormiu durante dias e nem a imprecisão dos meus movimentos a acordou, levei o corpo ao deserto queria mostrar-lhe como se chora no mundo. ficava perto do rio o deserto, na superfície da cara dessas pessoas, e nunca haviam dado com ele. ao acordar um raio de sol queimou-lhe a pele das mãos, sofreu um bocadinho, olhou-me depois como quem nunca soube o que era doer-lhe, esperei que falasse mas nenhuma palavra da boca lhe saiu enquanto o deserto lhe aumentava, gradualmente, no peito. porque o deserto é essa flor que cresce para o chão, e cresce tanto e tão depressa que a certa altura não vemos outra coisa senão areia e sol, a água ali tão perto, a cara ali tão perto e nós continuamente sós. soube então como chora o mundo e chorou com ele, eu fui pelo deserto adentro sem deixar rasto, a certa altura desapareci engolida pelo pó. nunca mais soube dessas pessoas que de madrugada costumavam ir à pesca de coisas vivas. nunca mais vi dessas caras por aqui.












Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=139357